Ao publicar Contágio: Infecções de origem animal e a evolução das pandemias, em 2012, o premiado jornalista americano David Quammen destacou o que acreditava serem hipóteses corretas das principais características da próxima epidemia global.
Chega a reconstituir a busca dos cientistas para entender o SARS-CoV-2, traçar sua origem e combatê-lo. O leitor brasileiro, porém, só teve a possibilidade de lê-lo no primeiro ano da pandemia, pois saiu em setembro de 2020.
Esse atraso acabou por redimensionar todo o impacto do que foi, de fato, uma obra premonitória, por antecipar em oito anos o risco que a humanidade corria de uma catástrofe de saúde pública, como tem ocorrido nos últimos três anos.
Segundo Quammen, havia consenso entre os especialistas sobre as características de uma onda viral de proporções trágicas. O causador seria um vírus novo aos humanos, que atingiria algum tipo de animal selvagem primeiro, como um primata ou um morcego, e se mostraria altamente mutável, ao estilo de um vírus influenza ou de um coronavírus. Sim, ele citou “coronavírus”.
Agora, o biógrafo das grandes epidemias, como ficou conhecido, volta com Sem fôlego: A corrida científica para derrotar um vírus mortal, lançado esta semana no Brasil, pela Companhia das Letras, para contar a história do SARS-CoV-2 sob o ponto de vista dos cientistas que trabalharam arduamente para compreendê-lo e ajudaram a apontar caminhos para se desenvolver a vacina contra a Covid-19.
Desde o início de 2021, ele entrevistou 95 nomes de primeiro escalão da ciência e algumas autoridades de saúde pública e mostra que novos vírus podem afetar os humanos por culpa deles próprios, ao interferir com enorme impacto na natureza. A ponto de levar a catástrofes globais por meio de contaminação em massa, como a atual pandemia.
Um dos temas tratados no novo livro é que o atual coronavírus deverá circular indefinitivamente de uma forma ou de outra e com mutações que podem levar a novas contaminações graves. O autor revela que especialistas em doenças infecciosas tinham alertado sobre o risco elevado de pandemia e foram ignorados por razões políticas ou econômicas. Embora seja difícil determinar a origem exata desses vírus, afirma ele, existem pistas convincentes e suposições que não podem ser descartadas.
Para algumas pessoas, escreve ele, o advento da atual pandemia não foi surpreendente, apenas chocante, pela maneira como algo tão terrível e sem controle pode chocar. As que não se surpreenderam foram os cientistas que estudam doenças infecciosas. “Há décadas, eles viam tal evento chegando, como um pequeno ponto escuro no horizonte do oeste de Nebraska, vindo em nossa direção com velocidade e força indetermináveis”. Quammen compara esse fenômeno a um caminhão de frangos desgovernado ou um caminhão de dezoito rodas carregado de aço laminado.
Para o autor, os cientistas sabiam que o agente da próxima catástrofe de saúde do planeta seria quase certamente um vírus. “Não uma bactéria, como a da peste bubônica, nem um fungo comedor de cérebros, nem um protozoário complexo, do tipo que causa a malária”. E, mais especificamente, seria um vírus “original”, o que significa que não seria novo para o mundo, mas recém-reconhecido como causa de infecção em seres humanos, vindo de animais silvestres ou mesmo de animal doméstico que funciona como intermediário.
A partir da investigação acertada de Contágio, o jornalista esmiuça como se deu todo o processo de aparecimento do vírus da Covid-19. “Nos anos anteriores a 2019, a palavra ‘coronavírus’ não era familiar para a maioria das pessoas, mas já carregava um caráter sinistro entre os cientistas de doenças infecciosas”. Ele procurou as pessoas certas para entrevistar. Um desses cientistas, cita ele, é Yize (Henry) Li, virologista e imunologista nascido na China, agora professor assistente da Universidade Estadual do Arizona, em Tempe.
Yize Li estava na Filadélfia durante os últimos dias de dezembro de 2019, quando viu uma nota de alerta no site de notícias chinês DiYiCaiJing, de Shanghai, da Comissão Municipal de Saúde de Wuhan. Falava do surto de um “patógeno desconhecido” que estava levando pacientes a vários hospitais da cidade com pneumonia. “Li fez prontamente o que as pessoas fazem com fofocas interessantes: postou a nota no WeChat, aplicativo chinês que combina as funções de Facebook, Instagram, WhatsApp e Zoom, com mais de 1 bilhão de usuários ativos”.
Quando levantou o tema de Wuhan no WeChat, alguns de seus contatos disseram: “Sim, isso é boato”; outros, ao contrário: “Sim, é verdade”. “Então, um deles jogou um trunfo", postando um relatório de sequenciamento verdadeiro que continha fragmentos dos genomas de vários micróbios, entre os quais bactérias e vírus de várias amostras clínicas. “Fiquei pasmo”, disse Li mais tarde, ao ver que era “muito, muito semelhante a um coronavírus da sars”. E disse para seu orientador, no fim de dezembro, que algo sombrio acontecia em Wuhan.
E assim Quammen passa a costurar sua história por meio de personagens fundamentais em suas relações pessoais e profissionais com a pandemia. É uma narrativa cronológica que atravessa os 18 primeiros meses mais terríveis, entre milhões de mortes – dezenas de milhares por dia – e o desenvolvimento das vacinas, as contradições, a descrença na ciência, as negligências, os abusos e absurdos provocados pelos negacionistas. E fez um livro sobre uma das maiores tragédias da humanidade para se entender como um pesadelo real tomou conta dos bilhões de habitantes do planeta.
Serviço:
Sem fôlego: A corrida científica para derrotar um vírus mortal
De David Quammen
Companhia das Letras
432 Páginas
R$ 129,90