No ano em que completa 80 anos de vida, a importância do carioca Nei Lopes para o samba aparece discreta em uma infinidade de frentes em que ele tem atuado nos últimos 60 anos. Está tudo junto e misturado em seu trabalho de resgate da história dos povos e das culturas africanas no Brasil – no continente de origem e na diáspora africana.

Nessa área, aliás, publicou as indispensáveis "Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana" e "Novo Dicionário Banto do Brasil". Na parte musical, é de sua autoria outra obra de referência que vai além da história do gênero, o "Dicionário da História Social do Samba".

Em 500 páginas, seu novo livro "Academia de Letras" (Editora Contracorrente), que chega às livrarias este mês, reúne também boa parte das composições de Nei Lopes, reconhecido como um dos grandes sambistas de todos os tempos – tem parcerias notáveis com Wilson Moreira, Ivan Lins, Zé Renato, Fátima Guedes e Ed Motta e mais de 300 canções gravadas.

Intérprete de suas próprias músicas, também foi gravado por Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco, Djavan, entre outros. A obra é um tesouro da música popular no último meio século – começou a compor em 1972 –, enriquecido por notas explicativas escritas por ele próprio e que contextualizam o momento, as curiosidades e as parcerias, em muitos casos.

Nascido no Irajá, bacharel em Direito e Ciências Sociais, com dez discos gravados e 21 livros publicados, Nei Lopes tem quatro títulos de Doutor Honoris causa (UFRGS e UFRRJ) e a Medalha da Ordem do Rio Branco, como reconhecimento pelo seu trabalho de pesquisa e interpretação da presença negra no país.

“Na tradição do velho samba, um conjunto de bons compositores formava uma ‘academia’. Em séculos passados, artistas, poetas e filósofos assim também denominavam suas associações”, observa o organizador, Marcus Fernando.

Reconhecido como um dos grandes sambistas de todos os tempos, Nei tem parcerias notáveis com Wilson Moreira, Ivan Lins, Zé Renato, Fátima Guedes e Ed Motta. Já foi gravado por Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco e Djavan

Esse amor pelo reconhecimento do samba pegou Nei Lopes também, de jeito irremediável. Ainda adolescente, apaixonou-se pela escola de samba Acadêmicos do Salgueiro e, na década de 1970, tornou-se membro da ala de compositores da agremiação, no mesmo momento em que iniciava sua carreira profissional como compositor.

“Daí o título deste livro, uma ampla seleção de letras de canções que atesta que sua produção está inscrita entre as mais significativas da história da música brasileira”, acrescenta Marcus Fernando. O volume inclui um QRCode, que remete o leitor a uma playlist no Spotify com grande parte das músicas do compositor para acompanhar sua leitura, na ordem em que aparecem no livro.

Na apresentação, o jornalista musical Tárik de Souza situa o artista na história do samba. “Este portentoso Academia de Letras insere Nei Lopes – em definitivo, se ainda havia dúvidas – entre os maiores compositores brasileiros de todos os tempos”. Nesta compilação de sua obra (até aqui), continua ele, entre inéditas e gravadas, “conjugam-se qualidade, quantidade e diversidade estética, atributos reservados a poucos e raros”.

Do maracatu ao jongo, xiba, toada, congada, choro, calango, afoxé, partido alto, curimba, samba de breque, de gafieira, coco, merengue, samba enredo, samba canção, samba rock, e variados formatos do gênero ancestral e suas ramificações, desde o lundu e o “semba” da matriz africana.

Mais adiante, prossegue Tárik: “Ao lado da galeria de tipos humanos, de impagáveis a amorosos, heroicos ou desprezíveis, desfila pela Academia de Letras uma sinfonia de instrumentos, que Nei Lopes compila e disseca, junto com usos e costumes, a história das humanidades, mais as questões sociais e políticas da terra que o escritor baiano Jorge Amado (1912-2001) nomeou em seu primeiro romance, O País do Carnaval”.

"Nei Lopes compila e disseca, junto com usos e costumes, a história das humanidades, mais as questões sociais e políticas da terra que o escritor baiano Jorge Amado nomeou em seu primeiro romance, 'O País do Carnaval'"

Para o crítico, a partir de suas composições, Nei Lopes promove uma fértil imersão no universo das escolas de samba, que vivenciou tanto no Salgueiro do coração, quanto na dissidente e ativista G.R.A.N.E.S. Quilombo, fundada por Candeia, e até na Unidos de Vila Isabel, para onde transferiu-se após rusgas nas sempre acendradas escolhas de sambas enredo.

No papo a seguir, exclusivo com o NeoFeed, Nei Lopes repassa os mais importantes momentos de suas carreira, suas formas de compor, o trabalho de resgate da cultura africana e nos convida a ouvir seus sambas de primeira linha, feitos com zelo e excelência, na melhor tradição do ritmo mais popular da música brasileira. Ele fala com a simplicidade e a modéstia de quem realmente sabe fazer as coisas.

Quando você viu este livro ganhar forma final, com 500 páginas, ficou impressionado com a extensão da sua produção musical ou tinha uma noção de tudo que fez?
Sinceramente, não houve surpresa para mim quando soube quantas páginas teria. Até porque ainda tenho muita coisa no “baú”.

Como você virou compositor? Foi algo instintivo ou num belo dia resolveu compor algo e buscou ajuda de alguém, procurou saber o processo, buscou um parceiro já com prática?
Aos treze anos de idade, escrevi um soneto de amor (imagine!) e mostrei, meio ressabiado, com medo de levar uma bronca, ao mais velho dos meus irmãos, Ernesto, 25 anos mais idoso que eu. Excelente violonista, ele pegou o instrumento e colocou uma bela melodia, em ritmo de samba canção. Aí tudo começou.

No começo você buscou uma unidade, um estilo, ou deixou fluir e fez coisas diversas, sem elementos que o identificassem?
Foi tudo muito natural. E as influências foram vindo principalmente do rádio. Inclusive, no início dos anos de 1960, compus alguns sambinhas na onda da bossa nova. Mais tarde, quando conheci Reginaldo Bessa, nós dois de cabelo Black, fizemos música soul, como um tributo ao então boxeador Cassius Clay, depois Muhammad Ali (campeão dos pesos pesados e que se rebelou contra a inclusão de mais soldados negros na Guerra do Vietnã e foi perseguido por isso). E quando encontrei Wilson Moreira, comecei, deliberadamente, a “visitar” o ambiente das antigas fazendas de café do interior fluminense...

Na apresentação, Tárik de Souza fala em “diversidade estética” na sua obra. Hoje, você consegue identificar características que o definem como compositor?
Eu sou, antes de tudo, um compositor de samba. E me sinto muito à vontade no estilo “partido-alto”, anunciando o assunto no refrão e desenvolvendo em estrofes “versadas” naquele diálogo dos “partideiros”. Isso é o que mais gosto e sei fazer. Mas também tenho incursões no coco nordestino, que tem quase a mesma forma. Enfim, eu sou um sambista por escolha. Mas ouço e assimilo tudo quanto é tipo de música boa. E quando tenho oportunidade, mostro isso.

"Enfim, eu sou um sambista por escolha. Mas ouço e assimilo tudo quanto é tipo de música boa. E quando tenho oportunidade, mostro isso"

Quanto ao conteúdo, o que predomina como tema em sua obra, mesmo com experiência em tantos gêneros musicais?
Dependendo do tema, minhas letras também desenvolvem crônicas, palavras de ordem, denúncias etc. Já os poemas de amor ficaram no passado. Afinal, sou um octogenário muito bem-casado, há mais de 40 anos.

Para você, compor é um sacrifício, exige um estado de espírito de melancolia, euforia, alegria, tristeza?
É sempre um prazer compor. Até mesmo na busca exaustiva de uma letra para uma melodia complicada. Quando acho, a autoestima vai lá no alto!

O título de seu livro brinca com o conceito de academia e você começou como compositor na “Acadêmicos” do Salgueiro. O próprio termo “Escola” de samba também tem a ver com graduação. Faz ideia por que os sambistas colocam essa relação há tanto tempo? Tem aí uma busca por respeito e valorização do samba?
É exatamente isto. O samba até hoje é, de um modo geral, subestimado. Porque grande parte da sociedade brasileira é estruturalmente colonizada e racista. Eu, com minhas armas, luto contra isso. E tenho autoridade para falar, por tudo o que faço, também fora do ambiente natural do samba.

"O samba até hoje é, de um modo geral, subestimado. Porque grande parte da sociedade brasileira é estruturalmente colonizada e racista. Eu, com minhas armas, luto contra isso"

Por outro lado, você é literalmente um doutor em samba. Não só compõe como é historiador e ensaísta. Estou enganado ou você é um caso atípico de sambista erudito, embora Martinho da Vila também seja escritor bem produtivo, aliás?
Como dizia o inesquecível Aniceto do Império: “a modéstia impede-me de responder-vos” (risos).

Você é um conhecido enciclopedista. Essa é uma importante contribuição sua para a memória do samba. Há uma militância sua nesse sentido, de resgate histórico?
As notas explicativas do livro são uma contribuição, foram pensadas nesse sentido. Na minha Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, em fase de atualização, muito trabalhosa, e no Dicionário Escolar Afrobrasileiro, que é meio filho dela, eu incluí muitos sambistas, principalmente compositores, dificilmente incluídos em um livro como aquele. O “segredo” aí é que, além de teorizar sobre o samba, eu sempre fui um prático, compondo, tocando, cantando e dançando. Da mesma forma, em relação à religiosidade africana que pratico e sobre a qual escrevo.

No seu livro as notas das músicas, segundo Tárik, “abrem comportas para um conhecimento mais aprofundado de sua obra e os caminhos percorridos por sua imaginação, estudos e sabedoria na forja de cada tema”. A experiência de escrever essas notas permitiu fazer uma releitura de sua vida?
Concordo com Tárik, sem falsa modéstia. A redação dos “verbetes” me fez relembrar muita coisa. Até as passagens mais tristes, como a perda do segundo filho – minha “Estrela Cadente” –, aos quatro anos de idade.

Há muitos sambas que você compôs sozinho. É melhor fazer assim? Ou você também curte parceria?
A minha maior precaução quando crio melodia é com o plágio inconsciente. Já me aconteceu isso. Felizmente, tive amigo pra me alertar. Mas quando consigo fazer e ver que o resultado foi bom, fico muito feliz com esta capacidade.

Como se compõe um bom samba enredo?
Samba-enredo antigamente era mais gostoso fazer. Não havia tanto direcionamento por parte dos “carnavalescos”, autores dos enredos. Hoje, alguns até incluem, na sinopse distribuída aos compositores, frases inteiras para serem utilizadas nas letras.

Há algum tipo de militância em seus sambas ou temáticas sociais ficam para os sambas enredo?
Já compus samba-enredo sem que fosse para desfile de escola. “A Epopeia de Zumbi”, sozinho, e “Nosso nome, resistência”, com Zé Luiz do Império, são exemplos.

"O samba, juntamente com o jazz e a música afrocubana, constitui a tríade imbatível da melhor música popular em escala global"

Pode citar três sambas seus preferidos e justificar brevemente o que cada um significa para você?
O “Raio de luar”, meu com o saudoso Dauro do Salgueiro, é um dos sambas que eu mais gosto, pelo casamento perfeito de letra e melodia e por ser um samba romântico e vigoroso, quase épico. O “Primo do Jazz” também, porque, além de tudo, é uma tomada de posição. O samba, juntamente com o jazz e a música afrocubana, constitui a tríade imbatível da melhor música popular em escala global. “O Tempero de Iaiá”, parceria com Sidney da Conceição, falecido bamba do Estácio, me faz muito bem porque evoca, na enumeração de pratos da culinária popular, muito da minha criação e da minha família.

Serviço:
Academia de Letras
De Nei Lopes
Editora Contracorrente
500 páginas
R$ 120
Data de lançamento: 19 de setembro