Nascido no interior do Paraná, o zootecnista Eder Bublitz, de 43 anos, tomou um susto quando, no fim de 2014, foi trabalhar como diretor técnico da Ceasa, em Curitiba. Vindo de uma família de pequenos agricultores, ele ficou estupefato com a quantidade de alimentos posta fora todos os dias, no entreposto.
“Foi chocante”, lembra o hoje presidente da central de abastecimento paranaense, em conversa com o NeoFeed. Entre 55 e 60 toneladas de frutas, legumes e verduras eram despachadas diariamente para os aterros sanitários — comida altamente nutritiva, em perfeitas condições de consumo, mas inadequadas para o comércio. Inconformado, Eder transformou a perplexidade em ação.
Em parceria com Jaqueline Macedo, ele desenvolveu um projeto para desviar os vegetais do fluxo de resíduos e levá-los à população em vulnerabilidade alimentar e nutricional. Assim, em abril de 2020, nasceu o Banco de Alimentos Comida Boa. Desde então, o projeto só faz crescer e ampliar sua área de atuação.
Adotado nas cinco unidades Ceasa do Paraná, em 2023, o programa evitou o desperdício de 5,3 mil toneladas de alimentos. Em 2024, 7,5 mil toneladas. And counting...
Cada uma das centrais conta com pelo menos um posto de arrecadação, onde os comerciantes doam os produtos, que antes iam para as caçambas de lixo. Uma equipe do Banco de Alimentos faz a seleção dos alimentos e aqueles que estão aptos para consumo humano (70% do total arrecadado) são encaminhados para as cozinhas industriais montadas dentro dos armazéns.
Depois de higienizados, alguns vegetais são fatiados, picados, ralados e congelados. Outros viram polpa, suco, molho, compota e geleia.
Das Ceasas, os produtos vão abastecer cerca de 350 instituições de assistências social — creches, orfanatos, asilos, casas de recuperação, hospitais públicos... espalhados por todo o estado. Direta e indiretamente, o Banco de Alimentos Comida Boa impacta 1,3 milhão de pessoas.
Quando a comida não serve para ser posta à mesa, as frutas, legumes e verduras são destinados a ONGs de bem-estar animal.
Cerca de 25 toneladas mensais de vegetais alimentam 4 mil bichos, de mais de 200 espécies — a maioria de origem silvestre, resgatada do abandono e dos maus tratos. Uma vez recuperados, os tucanos, araras, macacos e onças pintadas voltam para seu habita natural, recompondo o bioma da Mata Atlântica.
“Agora, vamos começar a fornecer comida também para o zoológico de Curitiba”, conta o presidente do entreposto paranaense.
O resto do resto
Na Ceasa Paraná, nem o resto do resto vai para o lixo. A central de abastecimento firmou recentemente parceria com a companhia de saneamento e os resíduos, que não servem nem a humanos nem a animais, viram bioenergia.
Com exceção à equipe administrativa, todas as operações do Banco de Alimentos Comida Boa ficam a cargo de apenados do sistema penal do Paraná. São cerca de 80 mulheres e homens, recebem um salário-mínimo nacional, vale refeição de aproximadamente R$ 600 e décimo-terceiro salário. E, o projeto de combate ao desperdício da Ceasa Paraná funciona também como programa de capacitação.
“O índice de ressocialização é hoje de 70%”, afirma Eder. “O Banco de Alimentos é hoje, portanto, importante não só para evitar o desperdício, mas na recuperação de vidas.”
Ao custo de R$ 2,5 milhões, por ano, aos cofres públicos estaduais, a experiência paranaense vem chamando a atenção dentro e fora do Brasil. Eder já recebeu a visita de representantes da Alemanha, México, Paraguai, Chile, Bolívia e Peru. Em 2023, o programa foi apresentado na Organização das Nações Unidas como exemplo de política publica no combate à fome e ao desperdício de alimentos.
No fim do ano passado, o Banco de Alimentos Comida Boa foi agraciado com a medalha de ouro do Stevie Awards, um dos prêmios empresariais mais importantes do mundo. Criado em 2002, homenageia as contribuições sociais de companhias de 62 países.
Jogo de ganha-ganha
Lançadas entre os anos 1960 e 1970, pelo governo federal, as Ceasas foram criadas para melhorar o escoamento da produção agrícola e garantir o abastecimento dos centros urbanos. Esses entrepostos, porém, vão além do comércio atacadista.
Ao centralizar as operações de compra e venda, as Ceasas ajudam a equilibrar a oferta e a demanda de alimentos, além de influenciar a formação dos preços e a regulação de padrões de qualidade.
Desempenham, portanto, um papel importantíssimo na segurança alimentar e, consequentemente, no combate ao desperdício de comida. O problema é que pouco se sabe sobre o que acontece nos cerca de 70 entrepostos espalhados pelo país.
Como é impossível enfrentar um problema sem conhecê-lo, no fim de 2024, o Pacto Contra a Fome assinou um acordo de cooperação com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar para viabilizar o estudo das iniciativas mais bem-sucedidas realizadas em centrais de abastecimento na redução das perdas de alimentos.
A experiência paranaense, antes e depois do Banco de Alimentos Comida Boa, revela: o desafio para conter o desperdício nos entrepostos brasileiros pode ser gigantesco, mas o impacto de sua solução é muito, muito maior.
Um jogo de ganha-ganha, que, parafraseando o químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794), poderia ser resumido por "na natureza [e na Ceasa Paraná], nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".