“Comida que ia para o lixo? Urgh!”
Até bem pouco tempo atrás, a maioria dos consumidores torceria o nariz para o reaproveitamento de alimentos resgatados do fluxo de resíduos. Para o bem do planeta (e da humanidade), felizmente, esse comportamento, aos poucos, começa a mudar.
Apontado como uma das estratégias mais eficazes no combate ao desperdício, o upcycling ganha cada vez mais espaço na indústria, nas cozinhas de nossas casas e nos cardápios dos foodservices, espalhados mundo afora.
Atualmente, 43% dos consumidores globais se mostram interessados por alimentos e ingredientes reutilizados — em 2022, eles eram apenas 35%. Dois em cada três estão dispostos, inclusive, a pagar mais por produtos desenvolvidos com o objetivo de diminuir o descarte de comida, informam os analistas da consultoria Innova Market Insights.
“Nos últimos anos, os consumidores têm enfrentado um mundo cheio de desafios sobre os quais eles têm pouco ou nenhum controle. Minimizar o desperdício de alimentos é algo que eles podem controlar e pelo qual podem experimentar uma recompensa instantânea: a sensação de que estão contribuindo positivamente para o planeta”, dizem. “Com um benefício adicional: reduzir seus próprios gastos.”
Entre as medidas domésticas, consumir na próxima refeição o que ficou da anterior aparece em primeiro lugar no ranking das mudanças de hábitos pelas quais as pessoas estão dispostas a passar para conter o desperdício em casa.
Mas, não custa lembrar: o pote com o resto de arroz do almoço não pode ficar esquecido no fundo da geladeira esperando quem-sabe-um-dia-talvez virar bolinho ou salada. A intenção só vale quando se traduz em ação.
As sobras são ainda a segunda categoria de alimentos mais desperdiçados nos lares, depois das frutas, verduras e legumes, aponta levantamento da ONG americana Natural Resources Defense Council.
Do lado dos fabricantes de produtos alimentícios e dos serviços de alimentação, o upcycling torna-se passo a passo uma fonte profícua de negócios.
Avaliado em US$ 53,7 bilhões, em 2021, o mercado global de reutilização de ingredientes deve movimentar US$ 97 bilhões, em 2031, evoluindo a uma taxa de crescimento anual composta de 6,2%, nas contas da consultoria Allied Market Research.
Outro exemplo do avanço do setor? Em 2021, quando a Upcycled Food Association (UFA) lançou o primeiro programa de certificação de alimentos e bebidas reaproveitadas, o selo foi concedido a cerca de 30 produtos. Hoje, são mais de 450. E, em cinco anos, o número de empresas afiliadas à associação saltou de nove para 240.
Resíduos e subprodutos
Na indústria, o upcycling pode vir tanto do resgate de resíduos quanto de subprodutos da cadeia agroalimentar.
Fundada em 2018, em Cambridge, nos Estados Unidos, a foodtech Superfrau resgata o soro de leite fresco excedente da produção de iogurte grego na criação de bebidas gaseificadas, com sabor de frutas. Rico em eletrólitos, vitaminas e ácidos benéficos ao organismo, o insumo teria o lixo como destino.
Há seis anos, a The Ugly Company, sediada em Kingsburg, na Califórnia, transforma as frutas rejeitadas por sua aparência em snacks de frutas secas. Na embalagem dos produtos, uma provocação divertida: “Hello! I’m ugly” (“Olá! Eu sou feio”, em tradução livre).
Um terço das frutas e legumes produzidos anualmente no mundo nem chega às gôndolas dos supermercados porque é considerado feio. Imperfeitos esteticamente (mas perfeitos para o consumo) costumam ser descartados.
Para produzir meio quilo de frutas secas, a startup usa oito quilos de frescas. Dessa forma, cada pacotinho individual do produto representa quase dois quilos de frutas resgatadas. As cerejas, pêssegos, damascos, kiwis e nectarinas vêm de fazendas do San Joaquin Valley. Para os agricultores, é vantajoso, já que eles não precisam mais pagar pela coleta e descarte das “feiosas”.
Como a Superfrau e a The Ugly Company são apenas duas das empresas do ecossistema de inovação agroalimentar a se dedicar ao upcycling. Há muitas outras.
A Barnana converte bananas maduras demais para o mercado em chips; enquanto a Hidden Gems faz suco da casca de cacau, coco e abacate, entre outras. Já a Kazoo processa o gérmen do trigo em tortillas. A Climate Candy salva frutas e vegetais para transmutá-los em balas; e a Pulp Pantry usa a polpa descartada por fabricantes de suco na produção de salgadinhos. A Matriark Foods fica com vegetais dispensados por sua feiura e produz molhos e caldos. E por ai seguem as transformações.
Como se vê, criatividade e oportunidades de negócios não faltam.
Pegada de carbono (muito, muito) menor
As novidades vindas dos laboratórios dos inovadores do ecossistema foodtech somadas à mudança de comportamento dos consumidores acenam com a promessa de uma mudança radical nas etapas da cadeia agroalimentar onde se concentram os índices mais altos de perda de alimentos — os lares, o varejo e os foodservice, como se lê no documento Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos do PNUMA 2024, realizado pelo Programa da ONU para o Meio Ambiente e a ONG inglesa Wrap.
De acordo com o Projeto Drawdown, líder global em classificação de soluções climáticas, frear o desperdício de comida está entre as estratégias mais eficazes (quiçá a mais efetiva) para limitar o aumento da temperatura do planeta a, no máximo 2ºC, até o final do século, em comparação aos níveis pré-industriais, conforme o estipulado no Acordo de Paris, em 2015.
Uma pesquisa realizada pela Planet FWD, plataforma de descarbonização da indústria alimentícia, mostra o poder do upcycling. A empresa comparou o impacto ambiental de uma fibra prebiótica, obtida dos resíduos do processamento de grãos, com outros produtos semelhantes, feitos com "ingredientes novos".
A pegada de carbono do primeiro composto chegou a ser 23 vezes menor.E tem mais. Quando usada na formulação de uma barrinha de cereais, seus benefícios para o meio ambiente superaram, inclusive, as vantagens proporcionadas pela eliminação da embalagem de plástico.