Antes de encaminhar o usuário para a tela de pagamento, o aplicativo alerta: “Sua sacola é surpresa! Lembre-se que os itens podem variar de acordo com os excedentes do parceiro, ?”

Na plataforma Food To Save é assim mesmo — o cliente escolhe o estabelecimento, o tamanho da encomenda e se ela será doce, salgada ou mista. Nada mais. O conteúdo da compra, ele só conhecerá ao abrir o pacote.

Do fim de 2021 para cá, cerca de três milhões de “surpresas” da foodtech já resgataram 3 mil toneladas de alimentos do desperdício. Uma comida que, prestes a expirar, mas em perfeitas condições de consumo, teria o lixo como destino.

Entre restaurantes, padarias, supermercados, açougues, lojas de conveniência, empórios e até hotéis, são cerca de 4 mil estabelecimentos ativos no aplicativo, em 90 cidades (oito capitais) e no Distrito Federal. Estão lá Le Jazz Boulangerie, Cacau Show, Dengo Chocolates, Rei do Mate, Zé Delivery, Hortifruti Natural da Terra... e por aí vai, todo tipo de comida.

Desde a fundação da Food To Save, a plataforma já registrou 3 milhões de downloads, aproximadamente. “A gente tem um crescimento mensal de 10% a 12% na base de usuários”, diz Lucas Infante, de 36 anos, idealizador, cofundador e CEO da startup, em conversa com o NeoFeed. “O aplicativo é baixado por pessoas que moram em cidades, onde ainda nem sequer estamos.”

Grande parte do sucesso da foodtech se deve às redes sociais. Em fotos e vídeos no Instagram e no TikTok, os usuários exibem orgulhosos suas sacolas.

Por ser surpresa, a experiência é sempre divertida — o que será que veio? Há quem prefira só adquirir de marcas conhecidas, mas há quem se lance no escuro. Tchan, tchan, tchan, tchaaaaan...

“Imagine, gente, eu paguei para comer comida que ia para o lixo”, diz uma moça, de São Paulo. Enquanto abre a embalagem, ela mostra o que comprou sem saber o que estava comprando: um punhado de pão de queijo, um salgado de frango, dois croissants e uma trança de calabresa, por R$ 31,98.

Outra jovem pagou R$ 200, por uma peça de 1,4 quilo de cupim e pouco mais de 800 gramas de prime rib. Na boutique de carne, responsável por enviar a encomenda, normalmente, só a costela custaria R$ 120 reais.

E a alegria da usuária que, por R$ 34, foi sorteada com quatro donuts gigantes. No balcão ou nos aplicativos tradicionais de delivery de comida, os doces sairiam por, no mínimo, R$ 60.

Menos 6 mil toneladas de CO²

Está aí a grande sacada da Food To Save. A foodtech faz a conexão entre duas das principais fontes de desperdício — o varejo e os foodservice e os consumidores, responsáveis globalmente por quase 30% de tudo o que é perdido, ao longo da cadeia agroalimentar, da fazenda às nossas mesas.

Se os clientes da plataforma têm acesso a produtos com até 70% de desconto, os estabelecimentos conseguem vender “as sobras do dia” — o descarte representa um prejuízo anual de 2% a 6%, em média, do faturamento das empresas, calcula Infante. Para se ter ideia, apenas os supermercados brasileiros perdem cerca de R$ 8 bilhões anuais.

Todos os anos, o mundo põe fora um terço dos alimentos produzidos, o equivalente a 1,3 bilhão de toneladas. Essa montanha de comida consome uma montanha preciosa de recursos. Ocupa 1,4 bilhão de hectares de terras agrícolas e usa 2,5 quintilhões de litros de água. É como rasgar nota por nota, US$ 750 bilhões — US$ 40 bilhões, no Brasil.

Ao longo de sua história, a Food To Save evitou a emissão quase 6 mil toneladas de carbono, ao dar um fim mais nobre aos alimentos, livrando-os dos aterros sanitários.

Inédito no Brasil, o modelo criado por Infante tem atraído a atenção dos capitalistas de risco. No fim de 2023, a startup levantou R$ 14 milhões, em rodada liderada pela DSK Capital. A captação contou também com a participação dos fundos Spectra e HiPartners e o Grupo Trigo, controlador das marcas Spoleto, China in Box, Koni Store, LeBonton e Gurumê.

Apostaram também na foodtech Paulo Camargo (ex-presidente do McDonald’s no Brasil e atual CEO da Espaço Laser), João Branco (ex-VP de marketing da rede de fast-food) e João Galassi (presidente Associação Brasileira de Supermercados).

Lucas Infante (primeiro à esquerda), Guido Bruzadin, Fernando dos Reis e Murilo Ambrogi investiram R$ 250 mil na startup (Foto: Jefferson de Souza)

A inspiração para a Food To Save veio da dinamarquesa Too Good To Go (Reprodução toogoodtogo.com)

Se fossem um país, os alimentos descartados, globalmente, estariam entre os 7% mais ricos, com um PIB em torno de US$ 1,5 trilhão. E o terceiro no ranking dos maiores emissores de carbono: 11% de toda a poluição lançada, anualmente, na atmosfera, ficariam atrás apenas da China e do Estados Unidos

A ideia para a foodtech surgiu durante a pandemia, quando o CEO vivia em Málaga, na Espanha. Dono de uma franquia do Carrefour Express, ele percebeu que, mesmo durante o isolamento social imposto pela crise sanitária, independentemente do fluxo, o desperdício sempre existia.

“A Food To Save surge, portanto, de um inconformismo e de uma oportunidade clara de gerar impacto, um benefício de ganha-ganha para todo mudo”, define o empresário. Um bem para o planeta, as empresas e os consumidores. “No Brasil, um país pobre, a gente tem a oportunidade de dar acesso à comida”, completa o empresário.

No Brasil, as classes C, D e E somam quase 68% da população. No País, 64 milhões de mulheres, homens e crianças vivem em insegurança alimentar.

Ainda na fase de MVP (sigla em inglês para “produto viável mínimo”), Infante convidou Guido Bruzadin (atual CTO), Fernando dos Reis (COO) e Murilo Ambrogi (CMO) para a empreitada. Os quatro investiram R$ 250 mil no negócio.

Inspiração dinamarquesa

A filosofia da Food To Save foi inspirada na startup dinamarquesa Too Good To Go. Fundada em 2015, a foddtech está em quase 20 países europeus e nos Estados Unidos. Com 75 mil empresas em seu cadastro e US$ 46 milhões arrecadados em venture capital, já evitou o descarte de cerca de 100 milhões de refeições, o equivalente a emissão de 250 mil toneladas de carbono.

Ao que tudo indica, a Food To Save está trilhando caminho parecido. No ano passado, a startup faturou R$ 30 milhões e deve fechar 2024, com R$ 72 milhões. Há muito espaço para crescer e o mercado latino-americano está nos planos dos quatro sócios. Apenas outra foodtech, no Chile, usa estratégia semelhante.

Formado em administração de empresas e pós-graduado em gestão de negócios, Infante sabe que, por maior que seja o sucesso da Food To Save, está agindo em apenas uma etapa do gigantesco desafio imposto pelo desperdício de alimentos.

A solução definitiva só será alcançada quando todos os atores da longa cadeia agroalimentar se reconhecerem parte do problema e da solução. Se cada um contribuir, o futuro acena com a promessa de um Brasil sem fome e bem nutrido.

Os sócios da Food To Save fazem a parte deles. E não é pouca coisa, não. Quem imaginaria ver brasileiros comemorando o consumo de sobras? Tradicionalmente somos um povo adepto da cultura do “melhor sobrar do que faltar” e avesso à comida requentada.

Com acredita Infante, “estamos educando a sociedade, mostrando que o desperdício não faz sentido em um país com milhões de pessoas passando fome”.