“Qual foi a última grande inovação em gordura? E de quando ela é?” O empresário paulista Sergio Pinto, de 42 anos, lança a provocação e ele mesmo emenda: “O azeite de oliva, consumido há milhares de anos antes de Cristo”.
Sergio usa o exemplo do milenar óleo vegetal para explicar porque decidiu fundar, em 2022, a biotech Cellva Ingredients.
Graças aos avanços dos conhecimentos da ciência da nutrição e do aperfeiçoamento das tecnologias alimentares, hoje em dia, há novos nutrientes sendo estudados e lançados à profusão.
As gorduras, em especial, as de origem animal, porém, nunca mereceram a mesma atenção dispensada, por exemplo, às proteínas e aos carboidratos, diz o CEO da startup, em conversa com o NeoFeed.
E Sergio fala com o conhecimento de quem construiu carreira na indústria alimentícia e que, nos cinco últimos anos antes de se lançar empreendedor, foi diretor global de inovação e novos negócios da BRF.
Criada em parceria com a pesquisadora gaúcha Bibiana Matte, de 32 anos, especializada em cultura celular e engenharia de tecidos, a Cellva é a única startup de todo o Hemisfério Sul do planeta (e uma das poucas no mundo) a produzir gordura suína, a partir do cultivo de células em laboratório — sem o abate de um único porco.
Fundada com R$ 1 milhão vindo dos próprios sócios, a biotech foi eleita uma das seis startups de gordura cultivada mais promissoras do mundo, pela plataforma alemã Vegconomist, referência internacional em alimentos e ingredientes inovadores.
Não à toa, a Cellva vem atraindo a atenção dos venture capital — tanto nacionais como estrangeiros. Recentemente, a empresa captou R$ 6,5 milhões. O aporte foi liderado pela Seed4SCience, da Fundepar, gestora de fundos mantida pela Fundação de Apoio da Universidade Federal de Minas Gerais.
Participaram do financiamento a EA Angels, rede de investidores-anjos do Rio Grande do Sul, a incubadora alemã ProVeg e a empresa espanhola Rumbo Ventures. Até o fim de julho, quando encerra a primeira rodada de investimentos, Sergio e Bibiana pretendem trazer mais R$ 3,5 milhões, para os cofres da Cellva.
Sabor barbecue e queijo
Com o dinheiro da primeira captação, o CEO e a chief scientific officer (CSO) acabam de transferir o laboratório da empresa, em Porto Alegre, de um espaço de 40 metros quadrados para outro com o triplo do tamanho. Com a mudança, nesse primeiro momento, a Cellva está produzindo 10 quilos de ingredientes por mês.
“Mas nossa ideia é chegar ao final de 2026 com 10 toneladas mensais”, diz Sergio.
Os negócios estão caminhando em ritmo acima do esperado. Inicialmente, a previsão era lançar os primeiros produtos da biotech na virada de 2024 para 2025.
“Alguns parceiros já estão validando nossos processos para aquisição e já temos pelo menos uma proposta para compra direta”, conta o empreendedor. “No primeiro caso, são quatro das principais empresas de ingredientes — do Brasil e do mundo”, completa, sem revelar, no entanto, o nome dos interessados.
Por enquanto, a Cellva apresentou ao mercado dois dos três produtos aos quais se dedica. Comestíveis e livres de animais, tanto os microcarreadores quanto as microesferas de sabores e nutrientes podem ser usados pelos mais variados segmentos da indústria alimentícia.
Os microcarreadores funcionam como uma espécie de forma de bolo tridimensional, onde as células são colocadas para proliferar — e como elas se multiplicam! Com as microesferas, por sua vez, a título de experiência, a Cellva já produziu gordura suína com toques de barbecue e de queijo e enriquecida com vitaminas.
Nas contas do CEO, a biotech deve estar pronta para apresentar sua gordura ao mercado em meados de 2025. Até lá, ele e Bibiana querem aperfeiçoar o carro-chefe da empresa. Os resultados obtidos até agora são animadores.
Das bancadas de teste da biotech, já saíram gordura suína com baixa concentração de ácidos graxos saturados e rica em substâncias anti-inflamatórias e antioxidantes, de fácil digestibilidade.
A versatilidade da gordura suína
Não há, no reino animal, gordura tão versátil quanto a de porco — por isso, a escolha de Sergio e Bibiana. Apenas com o controle das substâncias, água, luz e energia usadas para alimentar as células, é possível definir o perfil da gordura a ser fabricada. E isso sem nenhuma manipulação genética.
A gordura é imprescindível para dar sabor, aroma, maciez e suculência às carnes, especialmente as bovinas e suínas. Sem ela, fica tudo sem graça, uma textura esquisita, esturricada... difícil de engolir.
O domínio sobre a formação do nutriente é fundamental para garantir o progresso de dois setores importantes para o futuro da alimentação — o de carne cultivada em laboratório e o plant-based. O primeiro está previsto movimentar US$ 1,1 bilhão nos próximos dez anos, e o outro, US$ 162 bilhões, até 2030.
Para os inovadores de ambos os segmentos, um dos maiores desafios na conquista dos consumidores é a criação de produtos de sabor, cor, aroma e textura semelhantes a suas matrizes animais.
Com o esgotamento do campo, a agricultura celular surge como uma das mais promissoras alternativas para tornar os sistemas agroalimentares mais sustentáveis, inclusivos, produtivos e resilientes às mudanças climáticas.
Em comparação aos métodos tradicionais de criação de animais, o cultivo de células utiliza 70% menos terra, 50% menos água e é 30% menos poluente. Sem contar o ganho de tempo. A Cellva produz em 21 dias o que os métodos tradicionais levam, no mínimo, dois anos.
Até meados de 2025, Sergio e Bibiana esperam também baratear ainda mais os custos de produção. Eles já avançaram bastante nessa direção. Nos primeiros ensaios, um quilo de gordura chegou a R$ 15 mil. Hoje, está por volta de R$ 200 — o equivalente a 2,5 vezes o preço da gordura tradicional.
A grande preciosidade da biotech é seu banco de células. O primeiro punhado de células obtido de um porco, cujas características Sergio só revela a nacionalidade brasileira, se multiplicou tantas e tantas vezes que a Cellva tem material suficiente para trabalhar pelos próximos 40 anos. Sem precisar voltar ao animal.