O Aurélio usa dois tópicos para definir a palavra INOVAÇÃO:
1- Introduzir novidades em.
2- Renovar, inventar, criar.
Se fosse dado a informalidades, o tradicional dicionário podia simplesmente recorrer a um só nome para definir o substantivo: JOÃO GILBERTO. Nenhum outro artista introduziu tantas novidades na música brasileira, foi tão inovador, inventivo e criativo quanto o baiano de Juazeiro.
Uma revolução profunda e perene. João mudou a escola de canto brasileira - já em processo de mudança com o advento dos microfones. Não se precisava mais berrar nas boates para ser ouvido.
Mas o “dó de peito” - como era chamada operística forma de cantar, que consagrou nomes como Francisco Alves, Nelson Gonçalves e Orlando Silva (este último, paradoxalmente, um dos ídolos de João) - era uma instituição da música brasileira, intocável, que ninguém até então ousara subverter.
Tanto que o produtor e todo-poderoso diretor artístico da Odeon, Aloysio de Oliveira, resistia em gravar um disco de João, mesmo após a insistência de Tom Jobim.
Para Aloysio, intérprete de verdade, tinha que ter vibrato, algo que João até tinha - podia, se quisesse, cantar na potência que bem entendesse -, mas o seu charme - e novidade - era justamente a falta de excessos. Ele estava começando a inventar a Bossa Nova.
O gênero só começou a virar produto, um fenômeno da música mundial, quando Aloysio, dessa vez instigado por Dorival Caymmi, foi pessoalmente até a casa de João ouvi-lo cantar.
A voz ele já conhecia, mas a maneira com que o músico baiano tocou seu violão, imprimindo uma batida moderna e inovadora, seduziu o executivo da multinacional.
O resto é história. A trilogia formada pelos discos Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961) mudou o rumo da música contemporânea, exportando a Bossa Nova para o mundo e influenciando até mesmo o autossuficiente jazz americano, que se apropriou da batida - e não o contrário, como verbalizou parte da crítica brasileira e seu velho complexo de vira-lata.
O Brasil entrou na moda. Não nos tornamos apenas bons bola - ao vencer o mundial na Suécia, em 1958. Passamos a ser sinônimo de bom gosto, em campo e fora dele
O Brasil entrou na moda. Não nos tornamos apenas bons bola - ao vencer a Copa do Mundo de Futebol na Suécia, em 1958. Passamos a ser sinônimo de bom gosto, em campo e fora dele. A bossa de João abriu as portas dos Estados Unidos para uma legião de cantores, compositores, músicos e arranjadores brasileiros. Alguns, como Astrud Gilberto, Sérgio Mendes e Eumir Deodato continuam até hoje por lá. Fazendo sucesso.
Aliás, vista num primeiro momento com uma música refinada, para poucos, consumida apenas pelos fãs de jazz, a bossa nova ganhou imensa popularidade no disputado mercado americano graças a João. O disco gravado em parceria com o Stan Getz (Getz/Gilberto), em 1964, venceu quatro prêmios Grammy e ficou em segundo lugar em todas as paradas de sucesso, atrás apenas dos Beatles.
O disco gravado em parceria com o Stan Getz (Getz/Gilberto), em 1964, venceu quatro prêmios Grammy e ficou em segundo lugar em todas as paradas de sucesso, atrás apenas dos Beatles
A partir daí, quando o mundo da música se abriu para João, ele, refém de suas idiossincrasias, se recolheu para um mundo particular - que se resumia, quase sempre, aos apartamentos e quartos de hotel no Leblon, de onde raramente saía.
O temperamento recluso ajudou a reforçar os mitos em torno do cantor e, até certo ponto, o manteve sempre na pauta. Não que ele precisasse. Mesmo gravando esporadicamente, nunca se ouviu um só disco irregular de João. Todos, sem exceção, entraram para a história como obras-primas incontestáveis.
Além do talento, João alcançava o grau de excelência com muito trabalho. Ensaiava uma mesma música centenas de vezes até chegar à perfeição - no seu caso, a linha de corte, sempre era muita alta. Os andares dos apartamentos onde morou, também. O folclore em torno do mito João conta que um de seus gatos se suicidou após ouvir a mesma canção sendo ensaiada 250 vezes.
O folclore em torno do mito João conta que um de seus gatos se suicidou após ouvir a mesma canção sendo ensaiada 250 vezes
O perfeccionismo afastou João dos palcos. Eram poucos os lugares que ele aceitava cantar. Quando abriu exceção, como no caso da inauguração da casa Credicard Hall, em 1999, em São Paulo, arrependeu-se. Chegou a mostrar a língua para a plateia, que, barulhenta e desrespeitosa, o tratou como um cantor de churrascaria.
A Odeon também lhe devia respeito - e agora dinheiro. Ao juntar os seus três primeiros discos numa só compilação, alterando gravações originais, mexendo em arranjos, a gravadora enfureceu João, que a processou, exigindo a retirada da coletânea e uma gorda indenização.
Em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou em segunda instância a condenação da Universal Music, que detém o acervo da Odeon. Uma perícia calculou em R$ 173 milhões a dívida da gravadora com o músico baiano.
Uma perícia calculou em R$ 173 milhões a dívida da gravadora com o músico baiano
Recluso no apartamento, com dívidas monumentais, João nunca ligou para dinheiro - queria apenas que tratassem sua música com o devido respeito. A Universal recorreu.
Tão demorada quanto a Justiça brasileira será a permanência de João Gilberto, morto no sábado, 6 de julho, aos 88 anos, no seleto grupo dos grandes cantores da história da música.
*Tom Cardoso é jornalista e biógrafo. Atualmente, escreve a biografia da cantora Nara Leão, que sairá em março de 2020 pela editora Planeta.
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