O médico americano John Halamka é um apaixonado por tecnologia. Não à toa, há dois anos ele comanda a Mayo Clinic Platform, a área de negócios digitais da Mayo Clinic, uma rede de clínicas médicas dos EUA que tem unidades no Arizona, em Minnesota e na Flórida, e cerca de 3,7 mil médicos e cientistas entre seus profissionais.

Diariamente, o time comandado por Halamka trabalha em algoritmos que tentam acelerar e tornar mais preciso o diagnóstico de doenças. Por exemplo, a inteligência artificial pode ser usada para analisar os exames de sangue feitos por um paciente ao longo dos últimos cinco anos e identificar se há uma pequena chance de ele desenvolver um câncer.

“Os algoritmos estão olhando para a sua experiência de vida para prever a doença, ou para detectá-la antes que se torne séria, para que possamos fazer intervenções”, afirma Halamka, em entrevista exclusiva ao NeoFeed, após participação no Einstein Frontiers, evento online promovido pelo Hospital Albert Einstein nesta semana.

Halamka contou também como a Mayo Clinic, durante a pandemia, foi capaz de usar a tecnologia para avisar pessoas que estavam tomando cloroquina em tratamento contra a covid-19 que o medicamento poderia lhe causar problemas de coração.

Em geral, cerca de 10% dos que tomam a cloroquina podem desenvolver arritmia cardíaca, ele diz. “Pudemos dizer a eles que eles estavam entre esses 10%”.

Na entrevista, o presidente da Mayo Clinic Platform falou sobre a adesão das tecnologias pelos médicos, quais são as apostas da companhia para o futuro, as lições da pandemia e os desafios para o setor de saúde. Confira:

Você assumiu a área de negócios digitais da Mayo Clinic há dois anos. Que balanço faz desde então?
Foi fascinante porque entrei em dezembro de 2019. Estive fisicamente na Mayo Clinic, em Rochester, por cerca de três meses antes de a pandemia tornar as viagens um tanto difíceis. Então, o que tivemos que fazer foi promover a inovação digital da empresa com equipes virtuais em todo o mundo. E gerenciar mudanças e executá-las com uma equipe virtual é uma habilidade de gerenciamento um pouco diferente. Então, eu diria a você, minha maior lição aprendida nos últimos dois anos é o poder de construir equipes virtuais internacionais para inovar.

Como a coleta, o processamento e a análise de dados por meio de algoritmos podem ajudar uma empresa de saúde?
Bem, deixe-me dar um exemplo. Vou inventar isso, é claro. Suponha que você tenha um medidor de pressão arterial em casa e me envie 10 mil medições normais de pressão arterial. Ninguém terá tempo para revisar 10 mil medições normais de pressão arterial. Mas e se um algoritmo for capaz de dizer: bem, sua pressão arterial é sempre 110 por 70, mas, hoje, está em 170 por 100. Algo deu errado. E você precisa de uma avaliação urgente. Certo? Portanto, a chave é transformar os dados em ação. E é aí que ter algoritmos que analisam todos esses volumes de dados e nos dizem quando agir é fundamental. Não há maneira humana de um médico ou uma enfermeira lidar hoje com as novas fontes de dados emergentes. Mas os algoritmos podem ajudá-los a realmente alcançar um ótimo resultado.

"A chave é transformar os dados em ação. E é aí que ter algoritmos que analisam todos esses volumes de dados e nos dizem quando agir é fundamental"

Seria possível prevenir doenças como o câncer, por exemplo?
Sim, absolutamente. Há várias maneiras de pensar sobre isso. Novamente, não estou endossando nenhum produto ou serviço aqui, certo? Então, imagine que você fez três exames de sangue nos últimos cinco anos, e eles foram completamente normais, totalmente normais. Agora, você provavelmente sabe que, na verdade, os exames de sangue apresentam uma variação do que é considerado normal.O que é normal para você e normal para outra pessoa podem ser, na verdade, bem diferentes. Um algoritmo pode observar seus exames de sangue ao longo do tempo e dizer: na verdade, embora sejam normais, a tendência que observamos ao longo dos anos é consistente com um câncer de cólon em desenvolvimento muito, muito pequeno.

Em quanto tempo isso seria possível?
Na verdade, já existem algoritmos que fazem isso. Ou seja, eles estão olhando para a sua experiência de vida para prever a doença, ou para detectá-la antes que se torne séria, para que possamos fazer intervenções. E no câncer, essa é uma abordagem muito, muito possível para prevenir doenças. São coisas que usamos na Mayo Clinic, mas também há várias startups israelenses que criaram alguns desses para câncer de mama. Para nós, o algoritmo do câncer de mama estará disponível no próximo ano.

Você já comentou que os algoritmos podem identificar pessoas que podem ter problemas de coração por causa da cloroquina. Como seria isso?
A hidroxicloroquina tem um efeito colateral em algumas pessoas, fazendo com que o intervalo em seus batimentos cardíacos fique longo, chamado de intervalo QT. O problema é que, quando o intervalo fica longo, ele vira uma ameaça, para uma potencial arritmia cardíaca. Cerca de 10% das pessoas que tomam hidroxicloroquina desenvolvem esse longo intervalo QT e, portanto, apresentam risco de arritmia. Então, é importante detectar quem realmente tem esse longo intervalo QT e dizer a eles que parem de tomar o medicamento. Na verdade, fizemos isso. Dissemos isso a 5.500 pacientes que estavam tomando a cloroquina contra a covid-19. Usamos um monitoramento remoto em seus telefones (para identificar os batimentos) e pudemos dizer a eles que parassem de tomar o remédio porque eles estavam entre os 10% que tinham alteração no batimento do coração.

O que os médicos estão achando dessas novas tecnologias para acelerar diagnósticos?
Foi William Gibson (escritor de ficção científica) quem disse: o futuro já está aqui. É apenas distribuído de forma desigual. Alguns médicos dizem que adoram este mundo digital, que amam os algoritmos que lhes dão mais ferramentas. Já alguns dizem que agora vão se aposentar. Então, em termos matemáticos, há uma distribuição gaussiana de adoção de tecnologia digital. Às vezes está relacionado à idade. Os médicos jovens, nativos digitais, adoram, e os médicos mais velhos, no final da carreira, não. Mas é uma questão de encontrar incentivos. E se eu disser a eles: veja, você vai realmente chegar em casa uma hora mais cedo todos os dias por causa dessa tecnologia digital. Na verdade, tenho visto a maioria dos médicos adotando a tecnologia que melhora a qualidade de vida na prática.

"Alguns médicos dizem que adoram este mundo digital, que amam os algoritmos que lhes dão mais ferramentas. Já alguns dizem que agora vão se aposentar"

Em que tipo de soluções vocês estão investindo hoje?
Acreditamos que é cada vez mais importante, em um mundo virtual, coletar mais informações de sua casa. Então, investimos nessa capacidade de fazer monitoramento remoto de pacientes, de todos os tipos de sinais. Acreditamos que é muito importante produzir algoritmos que nos ajudem a diagnosticar e tratar doenças. Acreditamos que é importante garantir que eles sejam éticos e imparciais, e justos e úteis. Investimos nisso. E achamos que novos modelos de atendimento avançado em casa, que podem proporcionar internações, reabilitação, consultas de emergência em sua casa, são importantes.

A pandemia ajudou a reforçar essa tese?
Sem dúvida. Deixe-me dar um exemplo exato. Minha mãe está fazendo 80 anos. E minha mãe não é exatamente o que chamarei de uma das primeiras a adotar a tecnologia. Bem, durante um tempo da pandemia, ela não tinha escolha. Comprou um iPad, foi ver seu médico virtualmente. Comprou remédios pela internet, sem sair de casa. Então, minha mãe viu, na pandemia, que isso funciona muito bem. Portanto, mudou substancialmente a nossa cultura, é claro.

A Mayo Clinic tem planos de vir ao Brasil?
Bem, temos um braço internacional. E, nesse braço internacional, estamos apenas interessados em divulgar o conhecimento da especialidade da Mayo Clinic e o acesso aos cuidados em todo o mundo. Abrimos um hospital em Abu Dhabi e em Londres. E também temos alguns colaboradores na América do Sul.