Tara Westover pisou em uma sala de aula pela primeira vez aos 17 anos. Isolada em uma fazenda no interior de Idaho, ela cresceu sem poder ir à escola, graças ao fanatismo do pai que acreditava que o fim do mundo estava próximo. A americana conta sua jornada inspiradora - de uma educaçāo formal tardia até o doutorado em Cambridge - no livro “A menina das montanhas”.

Após os primeiros anos de faculdade, ao questionar se deveria continuar os estudos ou seguir o mesmo destino das mulheres de sua família, Tara ouviu de um professor um conselho que mudou a sua história: “Primeiro descubra do que você é capaz. Depois decida o que vai fazer com isso”.

É fundamental que mais meninas sigam os passos de Tara e de outras mulheres talentosas e descubram o enorme potencial que carregam quando podem ter acesso à uma educação emancipadora.

A relevância da equidade de gênero nas carreiras ligadas à ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) vai além do debate sobre mercado de trabalho. Como diz a jornalista e ativista Caroline Criado Perez no livro Invisible Women: Exposing Data Bias In A World Designed For Men, “se estamos desenhando um mundo que deve funcionar para todos, precisamos incluir mulheres na sala de comando”.

"A relevância da equidade de gênero nas carreiras ligadas à ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) vai além do debate sobre mercado de trabalho"

Aliás, o trabalho de Caroline é fundamental para entender como o gap de gênero na era do big data pode tornar metade da população mundial completamente invisível. Trazer mais meninas para as faculdades de tecnologia e prepará-las para o mercado de trabalho do século XXI é uma demanda urgente.

Em um mundo em que inteligência artificial, metaverso e robôs passam a fazer cada vez mais parte do nosso cotidiano, é fundamental que o desenvolvimento dessas tecnologias não carregue vieses e preconceitos de gênero. Por exemplo, a chance de mulheres sofrerem ferimentos graves em acidentes de carro é 47% maior do que homens.

Um dos motivos é que os testes de segurança utilizam dummies - apelido dos manequins utilizados nessas medições - que retratam um homem de corpo médio (175 cm; 75.5 kg). Ou seja, esses estudos acabam não considerando as variações de peso, altura e posição de dirigir de mulheres, crianças e pessoas idosas.

Vale lembrar que as femtechs surgiram apenas na última década para atender às necessidades biológicas femininas, como o monitoramento da menstruação e da fertilidade, e soluções para gravidez, amamentação e menopausa. Outra vez uma das razões para essa demora, considerando que as mulheres representam metade da população global e possuem um alto poder de compra, é a evolução da ciência centrada no corpo masculino.

Os cursos de tecnologia ainda sāo masculinos

Quando olhamos para as estatísticas, a diferença de performance entre meninas e meninos no PISA 2018 na prova de Matemática foi de nove pontos no Brasil, contra cinco na média dos países da OCDE.

Entre os estudantes com a maior nota em matemática ou ciências, cerca de um em cada três meninos no Brasil espera trabalhar como engenheiro ou profissional de ciências aos 30 anos, enquanto apenas uma em cada cinco meninas têm o mesmo desejo. Cerca de duas em cada cinco alunas de alto desempenho esperam trabalhar em profissões relacionadas à saúde. Do lado dos meninos, somente cerca de 25% têm a mesma aspiração.

Levantamento do "Igualdade STEM" com dados do Censo da Educação Superior de 2018, do Inep, mostra que das 246 ocupações STEM identificadas pelos pesquisadores, apenas 39 têm maioria feminina – entre elas, biologia e engenharia de alimentos.

A desigualdade de gênero é mais acentuada nos cursos das áreas de Tecnologia da Informação e Engenharias. No curso de Redes de Computadores, as alunas correspondem a menos de 8% do total de estudantes e no curso de Engenharia Mecânica, o valor é de 10%.

Ou seja, a maioria das meninas não se interessa por cursos de tecnologia, mesmo sendo totalmente capazes. Mas se as carreiras no setor são as que oferecem melhores salários, flexibilidade e número de vagas, por que as mulheres ainda não tomaram conta dos bancos das universidades de tecnologia?

"Se as carreiras no setor são as que oferecem melhores salários, flexibilidade e número de vagas, por que as mulheres ainda não tomaram conta dos bancos das universidades de tecnologia?"

Uma mudança estrutural

O estudo "Girls' career aspirations in STEM", da Comissão Europeia, ajuda a entender quais podem ser os impulsionadores das aspirações das meninas quando elas estão fazendo escolhas sobre qual curso seguir na faculdade. Um dos achados é que os fatores contextuais, o histórico familiar e as crenças gerais da sociedade em relação às mulheres em STEM podem influenciar os interesses e as aspirações de carreira das meninas.

Ou seja, precisamos urgentemente oferecer oportunidades desde a educação básica para que as meninas experimentem a tecnologia de uma forma divertida, inspiradora e prática, de forma que consigam se enxergar como programadoras ou engenheiras. Além disso, mídia, empresas, governo, escolas e famílias precisam se unir para derrubar os estereótipos predominantes de uma sociedade ainda patriarcal.

Dessa forma, é fundamental cuidar dos meninos para que eles façam parte da mudança ao lado das meninas. O ideal é que todos estejam inseridos em modelos de ensino que ofereçam oportunidades iguais para que eles (meninos e meninas) possam aprender, construir e agir em prol de um mundo de equidade.

"É fundamental cuidar dos meninos para que eles façam parte da mudança ao lado das meninas. O ideal é que todos estejam inseridos em modelos de ensino que ofereçam oportunidades iguais para que eles possam aprender, construir e agir em prol de um mundo de equidade"

As aspirações de carreira durante a adolescência demonstraram ser bons preditores de escolhas reais de carreira na idade adulta, embora as preferências de carreira possam ser formadas mais cedo.

Assim, ao fornecer insights sobre os impulsionadores das aspirações das meninas quando elas podem estar fazendo escolhas sobre o ensino médio e superior, este estudo ajuda a entender as razões para a menor participação das mulheres no setor STEM e quais iniciativas políticas podem impulsionar as aspirações das meninas em Ocupações STEM e TIC.

A estrutura conceitual deste estudo é baseada na Teoria Social Cognitiva da Carreira (SCCT), que tem como hipótese que os principais impulsionadores das aspirações de carreira em STEM são:
- Crenças de autoeficácia STEM: autoconsciência individual das habilidades STEM e capacidade de ter um alto desempenho em disciplinas STEM.
- Crenças de expectativa de resultado STEM: crenças individuais na chance de sucesso em disciplinas e carreiras STEM.

Maíra Habimorad é presidente do INTELI, Instituto de Tecnologia e Liderança, que oferece programas de incentivo à diversidade e à presença feminina na área de tecnologia. É membro do Conselho da ONG Recode e Co-fundadora da plataforma de empregabilidade Bettha.com. É co-autora do livro “Sua Carreira” (ed.Leya).