A pandemia do novo coronavírus colocou a economista e empresária Geyze Diniz frente a frente com o drama da fome. Durante a emergência sanitária, ela ajudou a criar e participou ativamente de iniciativas de apoio às famílias mais vulneráveis.
Se, de um lado, Geyze foi confrontada pela tragédia social imposta pela covid-19; de outro, a economista testemunhou a força da união da sociedade em torno de um objetivo comum. “Nesse momento, eu tenho um despertar de olhar: quando todos se juntam, a coisa acontece em outro patamar”, lembra ela.
Dessa experiencia nasceu o Pacto Contra a Fome. Antecipado com exclusividade para o NeoFeed, o movimento está sendo lançado nesta terça-feira, 23 de maio. Na ocasião, será apresentada também a campanha “Com fome não dá”, da qual participam celebridades como a cantora Ivete Sangalo, o cantor Criolo, a influenciadora Pequena Lo e o time de futebol Atlético Mineiro, que em sua conta no Twitter anunciava: “O Galo é o primeiro clube do Brasil a integrar o movimento Pacto contra a Fome”.
A iniciativa é suprapartidária e multissetorial, frisa constantemente Geyze. “Isso não é meu; não é da minha família. É de toda a sociedade”, defende ela, que explica que houve um aporte de family and friends neste início, mas o Pacto vai precisar de recursos e está aberto para captação. “Só vai funcionar se todos se engajarem.”
Aos 51 anos, casada com o empresário Abilio Diniz, Geyze se apresenta como cofundadora e presidente do conselho do Pacto Contra a Fome. Ao lado dela estão 30 especialistas no assunto. Entre eles, David Hertz, chef, empreendedor social e fundador da ONG Gastromotiva; Edu Lyra, cofundador da ONG Gerando Falcões; Celso Athayde, empresário e ativista social; Juliana Tângari, diretora do instituto Comida do Amanhã; e a empresária Ana Maria Diniz.
E pensar que tudo começou com uma curiosidade da economista. Passada a fase mais dura da covid-19, Geyze quis entender o problema da fome no Brasil – e sua relação com o desperdício de alimentos. Na falta de dados, em especial sobre a perda de comida, Geyze contratou a Integration Consulting para fazer o diagnóstico do problema.
E os resultados foram alarmantes: 33,1 milhões de brasileiros não têm o que comer hoje, nem sabem quando voltarão a fazer uma refeição. Considerados os outros dois níveis de insegurança alimentar, o moderado e o leve, o número de afetados sobe para 125 milhões.
Em relação ao volume de comida jogada fora, os dados foram igualmente inquietantes. Das 161 milhões de toneladas de alimentos produzidos anualmente no país, 55 milhões de toneladas vão para o lixo. Em outras palavras, o país desperdiça oito vezes a quantidade necessária para alimentar a população em situação de fome.
Bateu o inconformismo e Geyze se lançou na missão de formar o Pacto. Os planos são ambiciosos. O objetivo é acabar com a fome no país até 2030. E, que até 2040 todos os brasileiros sejam bem alimentados. E isso, defende ela, só será possível se todos, cada um de nós, individualmente, assumirem sua responsabilidade no problema.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Geyze para o NeoFeed:
O primeiro grande movimento da sociedade civil no combate à fome foi lançado em 1993, pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Vinte anos depois, o Brasil não saiu do mapa da fome. Como você pretende acabar com a fome em apenas sete anos?
Até 2030, é pouco tempo. Mas, para quem tem fome, é uma eternidade. É preciso colocar essa barra lá no alto mesmo e corrermos atrás. Nós estamos juntando todo mundo em torno dessa missão: governos, academia, empresariado, entidades não governamentais e religiosas. Não queremos inventar a roda. Queremos dar visibilidade, promover e criar sinergias entre iniciativas já existentes. Essas trocas são fundamentais. Por isso, nosso movimento é suprapartidário. Somos “supra” em tudo. Não tem crença, não tem religião, não tem partido político, não tem raça, não tem gênero. Aqui a gente fala com todo mundo. Com cada cidadão brasileiro. Porque todos os dias a gente compra comida, come e joga comida fora.
"Nosso movimento é suprapartidário. Somos 'supra' em tudo. Não tem crença, não tem religião, não tem partido político, não tem raça, não tem gênero"
Qual é a importância da tecnologia para o movimento?
É fundamental. A tecnologia consegue mapear onde tem fome, onde tem desperdício. Em parceria com a Accenture, Google e Cesar School, do Porto Digital, em Recife, desenvolvemos um hub, uma plataforma de inteligência para conectar as iniciativas de combate à fome e desperdício de alimentos. A plataforma é aberta e a ideia é que todos os envolvidos se cadastrem. Dessa forma, eles vão se enxergar.
Como engajar a iniciativa privada no movimento? A atuação do setor deve ser mais profunda do que a distribuição de cesta básica, não?
Claro. O olhar tem de ser estrutural. O empresariado tem se sentir parte do problema e não apenas da solução. É uma mudança de mindset. O ideal é que as empresas olhem para dentro e coloquem o tema em seu core. Podem dizer: “Ah, sou voltado para educação...” Como educar uma criança que não tem o que comer? Olhe para seus funcionários, sua comunidade. Ajude na questão de advocacy para políticas públicas. Não olhe só para o seu negócio. Olhe para o setor.
E como convencer as pessoas, individualmente, no dia a dia de casa?
Somos um país que nunca viveu uma guerra, felizmente. Mas vivemos com inflação por muitos anos. Então, estocar alimento é muito comum. A mesa farta é cultural, em todas as classes sociais. A gente começa a mudar hábitos com dados. E também quando pega no bolso – isso vale para o cidadão e para a empresa. O brasileiro não gosta de comida requentada, por exemplo. Já disparamos um estudo para ver qual é a parcela da população que cozinha duas vezes por semana. Se esse número for expressivo, vamos mergulhar na segunda parte da pesquisa. E ver quanto uma família de quatro pessoas economizaria se cozinhasse uma vez por dia e esquentasse o jantar. Esse tipo de informação pode ajudar a mudar hábitos. E tem de estar sempre batendo no assunto. Na imprensa, no entretenimento. Fome e desperdício de alimentos têm de estar na novela.
Você insiste muito na importância de que cada um assuma sua responsabilidade. Por quê?
Quando a gente está doente, procura ajuda médica. Quando é o outro que adoece, a gente até se preocupa, mas acaba esquecendo. Ouvi de uma executiva da Vale que, enquanto não nos enxergarmos como parte do problema, a gente vai fazer firula. E todos nós temos reponsabilidade na questão da fome e do desperdício de alimento. Vamos, em 2030, ser o case mundial do país que acabou com a fome.
"Todos temos reponsabilidade na questão da fome e do desperdício de alimento"
O movimento tem algumas iniciativas de incentivo, não?
Temos o Prêmio Pacto Contra a Fome, em cooperação com a Unesco e FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). O objetivo é dar visibilidade e reconhecer as iniciativas que trabalham no combate à fome e/ou ao desperdício de alimentos. São três categorias, com duas subcategorias cada uma. São, portanto, seis prêmios, no valor de R$ 100 mil cada um. Esse ano, por ser o primeiro, abriremos apenas para as iniciativas do terceiro setor. Para as empresas, queremos fazer o crédito da fome, como tem o crédito de carbono. O foco é nutrição na primeira infância. Mas não adianta não fazer nada e achar que o problema está resolvido com a compra do crédito. Não é isso que que vai transformar.