O cantor e compositor inglês Paul McCartney não costumava protestar contra direitos autorais nem se juntar a grupos de pressão contra as gravadoras multinacionais. Por isso, o alerta soou quando o ex-Beatle encabeçou uma carta de 156 músicos britânicos ao primeiro-ministro britânico Boris Johnson.
O documento foi publicado em 20 de abril pelo diário londrino The Guardian e está sendo examinado pelo Parlamento britânico. A carta alerta para as remunerações baixíssimas que os cantores e compositores estão recebendo das plataformas de streaming de música, como Spotify, YouTube e Apple Music, e reivindica a urgente reformulação da política de direitos autorais do setor. O “Copyright Act” data de 1988 e está obviamente ultrapassado.
“Por longo tempo, as plataformas de streaming, gravadoras e outros gigantes da internet têm explorado músicos e criadores sem recompensá-los de forma justa”, diz o texto. “Precisamos restituir o valor da música a quem ela pertence – às mãos daqueles que criam música.”
Hoje, as plataformas de streaming de áudio, como Spotify, Apple Music, YouTube, Deezer ou Amazon Music, são responsáveis por 85% da receita da indústria fonográfica, de acordo com um estudo da Recording Industry Association of America (RIAA), apenas sobre o mercado americano.
No primeiro semestre de 2020, dado mais atual, o setor arrecadou US$ 5,7 bilhões, nos Estados Unidos, uma alta de 5,6% sobre o mesmo período do ano anterior. Só os serviços de streaming ficaram com U$ 4,8 bilhões dessa receita.
Por conta desses números bilionários, que não chegam ao bolso da imensa maioria dos cantores, músicos começaram a reclamar ao redor do mundo, inclusive no Brasil, das remunerações que recebem das plataformas online de áudio.
Depois de mais de um ano de pandemia e sem poder fazer apresentações ao vivo, eles têm recebido os direitos de reprodução de suas gravações nas plataformas digitais. O fato é que nunca estiveram tão à míngua, sobretudo os menos conhecidos.
Um dos primeiros a se preocupar no Brasil foi Ivan Lins, um dos músicos brasileiros mais famosos e influentes, com um catálogo de sucessos portentoso. Na semana passada, ele entrou em contato com os colegas do Reino Unido para buscar orientação.
E, mesmo confinado na serra fluminense, passou a contatar os companheiros brasileiros para organizar um movimento local contra as baixas remunerações. “Estamos submetidos à cleptocracia dos streamings”, teria dito a um amigo. “A carta dos britânicos abriu nossos olhos”, diz outro colega de Lins. “Até essa carta, Paul McCartney sempre ficou na dele.”
Paul passou os últimos anos sem falar contra a política das plataformas de streaming de música, como Spotify, YouTube e Apple Music, que dominam o mercado musical desde pelo menos 2008, data da fundação do serviço de streaming Spotify, do bilionário sueco Daniel Ek. Tudo parecia bem, mas algo mudou depois da pandemia.
O ex-Beatle segue sendo o cantor e compositor mais rico do mundo. Em 2020, sua fortuna foi avaliada em US$ 5,3 bilhões, segundo o jornal britânico The Sunday Times. Mas até Paul anda descontente, sem poder cantar diante de milhares de pessoas em grandes estádios, com altas bilheterias.
Os músicos brasileiros, em especial os sertanejos, ganhavam milhões com a arrecadação de seus shows. Agora, inspirados nessa constatação, a novidade no Brasil é que os músicos começaram a se mobilizar para criar uma ação parecida com a carta de Paul.
Diz a lenda que quando o músico nacional se reúne em uma mesa para reivindicar alguma coisa, nada acontece - além de música. “Daqui a pouco é cerveja, uísque e violão, e todo o resto para”, brinca o cantor e compositor Paulo César Feital.
Mas dessa vez pode ser diferente. “O fato é que, com o coronavírus, paramos de receber de uma hora para outra. Os streamings remuneram mal, e são sócios das gravadoras majors. Nada contra eles, porque sabem agir. O artista é que necessita se esforçar para mudar a situação e passar a ganhar honestamente pelo que produz”, afirma Feital.
De acordo de Jorge Vercillo - titular de 16 álbuns, autor de diversos sucessos da MPB em 13 novelas de televisão, como “Homem Aranha” (2002), “Monalisa” (2003) e “Ela une todas as coisas” (2007) - não se trata de demonizar as plataformas.
“O mundo digital fez um trabalho incrível e revolucionário”, afirma Vercillo. “O resultado é que as gravadoras e os serviços de streaming lucraram bilhões, mas relegaram os produtores de conteúdo para o fundo da pirâmide. Temos que tornar o sistema mais equilibrado.”
Vercillo está planejando um movimento que una os músicos brasileiros com o objetivo de produzir um documento semelhante ao dos ingleses. “São muitos interessados que entraram em ação nos últimos dias e acho que terei boas notícias a dar’, diz.
Outro compositor, Dudu Falcão, diretor da associação Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus ), afirma que os músicos brasileiros só se deram conta da tragédia que amargam por conta da pandemia.
“Quando eles pegavam a estrada e faziam show, nunca pensaram nos direitos autorais, já que o dinheiro vinha dos shows”, afirma Falcão. “Mas a estrada acabou. Daí o interesse positivo em reestruturar o modelo de remuneração. A classe dos músicos é extremamente desunida. Só que se deu conta de que chegou a hora de agir globalmente.”
A divisão da receita da indústria da música compreende uma distribuição de direitos que envolve diversas entidades, que gerenciam a execução, o direito de reprodução e o autoral. São os casos de gravadoras, editoras, associações de autores e o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), autarquia que detém a prerrogativa de administrar e fiscalizar todos os direitos autorais e de execução dos músicos.
“O modelo do ECAD funciona desde sua criação, em 1977, mas precisa, sempre, se atualizar, por causa do avanço digital”, diz Falcão. “O Movimento Procure Saber e o Grupo de Apoio Parlamentar Pró Música (GAP) já conseguiu algumas vitórias no Congresso Nacional, e vai continuar a obter vitórias.”
“Quando eles pegavam a estrada e faziam show, nunca pensaram nos direitos autorais. Mas a estrada acabou. Daí o interesse positivo em reestruturar o modelo de remuneração", diz Dudu Falcão
De acordo com Falcão, uma delas foi a Lei 12.853, que restaurou a fiscalização e regulação dos direitos a partir do Estado. “O ECAD voltou a ser regulado e fiscalizado, embora de forma ainda insuficiente e ineficiente”, diz ele.
Antes do ambiente digital, vigorava uma fórmula mais clara quanto ao direito de reprodução das vendas físicas, do LP ao CD. Ela deixava claro quanto um autor receberia das vendas dos produtos. O percentual de 8,4 % destinado ao pagamento de direitos autorais, era dividido pelo número de faixas, levando em conta o preço de capa do LP ou CD.
"Era menos injusto do que é hoje e, embora esse modelo ainda exista, perdeu quase que todo o espaço para o streaming. E, no ambiente digital, as regras e fórmulas não são bem definidas, ou muito pouco claras para um autor ter alguma ideia de remuneração", afirma Falcão.
Atualmente, as plataformas contam com um modelo que compreende a seguinte partilha das receitas: dos 100% arrecadados pela execução de uma música, por exemplo, a plataforma fica com 30% e a gravadora, com 58%. Os 12% restantes são distribuídos entre editoras (9%) e 3% (ECAD). O percentual que resta ao músico vem destes últimos 12%.
“O que nos sobra é algo na ordem de 0,1% a 0,0001%”, diz um cantor de sucesso, que prefere não se identificar. Ele conta que tem quase 2 milhões de seguidores no Spotify. Em 2020, um hit seu resultou em 400 mil audições da canção. “Sabe quanto eu ganhei? R$ 49!”, diz.
Em março deste ano, o Spotify, que faturou 7,8 bilhões de euros e vale US$ 48,1 bilhões, lançou uma página para explicar como divide o dinheiro com os artistas e compositores de sua plataforma, que tem 155 milhões de assinantes pagos.
De acordo a empresa, mais de 13 mil artistas tiveram uma receita de US$ 50 mil em 2020. Foram pagos US$ 5 bilhões em royalties de direitos autorais no ano passado - em 2017, eram US$ 3,3 bilhões.
Somente 870 artistas tiveram receita maior do que US$ 1 milhão. Por outro lado, 4,6 milhões de artistas tiveram ao menos uma música reproduzida. Em resumo, 89% deles receberam menos de US$ 1 mil ao ano.
“A empresa lançou o chamado Loud & Clear, que é uma forma de fazer esclarecimentos a respeito de como funciona o processo de pagamento e as receitas totais recebidas”, informou o Spotify, em nota ao NeoFeed.
“Ali estão explicados todos os pontos essenciais para que os músicos saibam como o conteúdo deles é visto pelo Spotify, incluindo uma calculadora que permite saber a classificação, quando comparado com os outros milhares de artistas que publicam canções rotineiramente.”
Para o gerente de conteúdo e produto da Deezer, Alexander Holland, a forma de remuneração da plataforma francesa é justa e transparente. “Pagamos 70% da nossa receita à indústria”, diz ele.
Vercillo enxerga um futuro glorioso junto às plataformas digitais. “Vamos nos esforçar para reformular o sistema e passar finalmente a ser remunerado de forma equitativa”, afirma. A solução, para Falcão, é prática: reestruturar a divisão e equilibrar o sistema de remuneração.
Ele propõe uma divisão equânime de 25% para cada integrante da indústria: plataforma, gravadoras, editoras e músicos. “É uma cadeia produtiva que a indústria deve repensar e reformular para que o lucro seja distribuído de forma mais justa para todos.”
É preciso agir agora e de forma planetária, acham os músicos: “Senão, corremos o risco de excluir os grandes artistas que vêm por aí. A música corre o risco de desaparecer se ninguém puder ganhar pelo que cria”, diz Galvão.
Todos concordam que a lista de Paul McCartney acendeu uma fagulha que poderá se espalhar muito em breve.