Bonaventure Soh Bejeng Ndikung é camaronês e estudou biotecnologia. A informação causa estranheza em quem o conhece pelo atual ofício: ele é curador de arte em Berlim e lidera a curadoria da Bienal de Arte de São Paulo de 2025, a convite da presidente da fundação, Andrea Pinheiro.

O salto de carreira, segundo ele, não é tão curioso assim. Em comunidades africanas, como a da qual ele veio, é comum que o médico trabalhe como curandeiro e artista, por exemplo.

À frente da equipe que seleciona artistas para o evento, ele fala sobre liderar em conjunto e sobre a importância da coletividade para melhores resultados. Bona vê na expansão das fronteiras a solução para as crises humanitárias.

“Devemos nos portar como os pássaros, que voam sem ligar para delimitação de linhas. Mapas são ferramentas de controle”, afirma.

Aqui, trechos da conversa e algumas de suas referências artísticas que buscam transformar a humanidade.

Para começar, vamos voltar no tempo. Quando você tinha 20 anos, se mudou de Camarões para Berlim para estudar biotecnologia. Pode me explicar o porquê dessa escolha?
Bem, terminei o ensino médio avançado em 1995 e me mudei de Bamenda para Yaoundé [capital de Camarões]. Aí surgiu a oportunidade de estudar no exterior e parti para a Alemanha. Foi um período muito interessante porque a cena artística era incrivelmente vibrante. Surgiam novas galerias toda semana. Mas tive sorte de conseguir uma vaga na Universidade Técnica de Berlim para estudar biotecnologia de alimentos. Sempre pensei que faria carreira nas ciências. Frequentava a universidade, mas também estava muito atraído pela cena artística de Berlim.

E quando você decidiu focar de vez na carreira artística? O que o motivou?
Não acho que tenha havido um momento exato em que a mudança aconteceu. A gente é necessariamente múltiplo e meu interesse pelas ciências não tira meu interesse pela arte. Venho de um lugar onde não existe uma diferença real entre arte e ciência, sabe? No vilarejo dos meus pais, médico também é a pessoa com o conhecimento tradicional: é o curandeiro, cientista e artista. Isso é comum em muitas comunidades indígenas pelo mundo, até no Brasil. E mesmo na Europa: Leonardo da Vinci era cientista, inventor e grande artista. Essas coisas andam juntas. A separação veio com a Revolução Industrial, quando precisamos nos especializar. Meu interesse pela arte já existia tanto quanto o interesse pela ciência.

“Isso é exatamente o que queremos fazer com a arte: a percepção de que sua humanidade depende da minha, e a minha da sua”

Mas quando foi essa virada definitiva?
Parei de trabalhar como cientista em 2014, quando a Documenta [uma importante exposição de arte contemporânea na Alemanha] aconteceu, e Adam Szymczyk [diretor artístico da Documenta 14] me convidou para entrar na equipe dele. Não deu para conciliar meu trabalho diurno das 9 às 17 h em uma empresa biomédica que produz marcapassos e desfibriladores com esse desafio.

Você descreve a curadoria como uma prática de encontros e negociações. É assim que vê isso?
Eu nunca tinha ouvido falar em curadoria, mas passei a adolescência organizando eventos. Realmente queria fazer as pessoas se encontrarem. A primeira vez que ouvi a palavra “curador” foi em 1998, vendo TV para aprender alemão. Anunciaram que Okwui Enwezor, que era um poeta e curador nigeriano-americano, seria diretor de uma mostra. Aquilo me surpreendeu muito, porque eu já estava na Alemanha há cerca de um ano, e era a primeira vez que eu via um homem negro, como eu, em horário nobre na TV, como um intelectual, um acadêmico, um poeta, fazendo um trabalho do qual eu nunca tinha ouvido falar. Mas deixei isso de lado porque precisava terminar meus estudos, fazer mestrado, doutorado, pós-doutorado. Comecei a me oferecer para escrever sobre os trabalhos do pessoal da Escola de Artes de Berlim [UdK — Universität der Künste Berlin]. Aí, recebia pedidos para escrever mais, ganhando dinheiro com isso e publicando. E foi assim que comecei.

Nesse contexto de representatividade, Koyo Kouoh [falecida em maio de 2025] foi sua amiga por muitos anos. Como foi a influência dela sobre você? Acho que é uma história bonita…
Sim, Koyo não era só uma amiga, era uma irmã. Eu já conhecia o trabalho dela há muitos anos, porque não existiam muitos curadores de origem africana, especialmente no começo dos anos 2000. Ela me influenciou especialmente pela coragem dela como mulher africana na área. Era muito direta, com opiniões fortes, e carregava consigo muita graça e dignidade. Aprendi muito a observando. Ela era muito querida, muito próxima, e me inspirou muito. Foi importante para o ecossistema artístico.

“As pessoas que escravizavam africanos pensavam que o Oceano Atlântico nos separaria. Mas nós o transformamos em uma junção, um fator que conecta”

Você também difunde essa ideia de fronteiras móveis e compara isso aos pássaros, que quando voam livres não veem divisões de território. Como instituições de arte deveriam atuar diante das fronteiras sociais, políticas e nacionais hoje para romper essas barreiras?
Penso que a única razão para fazer arte é imaginar um mundo melhor. E acredito que a única forma de a arte existir é além das fronteiras. É preciso questionar tudo aquilo que limita nosso ser no mundo, nossa humanidade, nossa existência. Mapas são ferramentas de controle. Tem um poema lindo da Lee Maracle [poeta indígena canadense] que diz: “Mapas sempre mentem. Mapas sempre tentam dizer a verdade onde não há verdade. Mapas sempre achatam.”

O público da Bienal vai poder ver isso?
É o que estamos tentando fazer. Tem um texto lindo do grande escritor nigeriano Achille Mbembe. Ele diz que se o ditado filosófico “Penso, logo existo” representa o ideal individualista europeu, a declaração bantu “umuntu ngumuntu ngabantu” — que significa “uma pessoa é pessoa por causa das outras pessoas” — representa a aspiração comunal africana. E finaliza: “Nossa humanidade depende da humanidade dos outros. Nenhuma pessoa ou grupo pode ser humano sozinho. Se aprendermos essa lição, mesmo que seja tarde, teremos dado um passo milenar à frente.” Não há outra forma de existirmos além disso. Ngũgĩ wa Thiong’o [escritor e ativista queniano], em um texto seminal de 1977, disse: “Para nos libertarmos da colonização, precisamos começar libertando nossa mente.” Isso vale para todos nós. Por isso a metáfora do pássaro é tão bonita, porque os pássaros não ligam, eles simplesmente voam.

Como você virou o curador da Bienal, um desafio que é o sonho de muita gente? E como a escritora Conceição Evaristo acabou inspirando o tema da mostra “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática”?
Foi um processo interessante. Quando recebi o convite, eu sabia exatamente que queria fazer algo sobre humanidade, por causa da condição do mundo: todas essas guerras, lutas, crises ambientais, coisas terríveis acontecendo. Eu tinha uma coletânea de poemas da Conceição Evaristo e pensei que isso era um sinal. O poema “Da Calma e do Silêncio” estava na minha cabeça porque é tão profundo, tão poderoso, e me guiou nesse processo. Outro ponto é que, desde os anos 1990, sempre tive muito interesse na música do Brasil. Meu pai ouvia e eu aprendi a gostar de Manguebeat. Quis usar essas duas referências para contar a história. Mas você não pode fazer uma Bienal sozinho, precisa de uma equipe forte. Trabalho como um maestro, que é tão significativo quanto a orquestra à sua frente.

“Todo o projeto colonial nos faz pensar que você precisa ser o primeiro, precisa estar na linha de frente. Não. Dê um passo atrás. Dê um passo atrás para ver melhor”

Como é o time que você montou?
Quis montar essa equipe e procurei pessoas com quem eu já tinha trabalhado antes. Foi assim que trouxe os cocuradores Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza e Keyna Eleison, cocuradora at large. O Brasil tem sido muito gentil comigo. Por muitos anos, eu vinha ao Brasil e pude fazer pesquisas, aprender e escrever sobre o Teatro Experimental do Negro de 1944 e outros movimentos. Ainda há muito por vir. Muitos afro-brasileiros vão à África para aprender sobre a África, para conhecer suas raízes. Mas poucos de nós africanos vamos ao Brasil para aprender sobre nosso futuro.

O que você acabou de descrever também contém a ideia de fronteiras fluidas, que ressoa com os versos do poema “Da Calma e do Silêncio”. Como você acha que as pessoas vão receber isso?
Em todo lugar, quando as pessoas leem esse poema, encontram um significado importante. Para mim, se essa estrada chamada humanidade está bloqueada, talvez devêssemos encontrar outro caminho. Qual é a chave para destrancar a porta desse mundo onde se pode entrar pelo silêncio da poesia? Na Bienal, teremos mais de 120 artistas reunidos para pensar coletivamente e todos os visitantes estão convidados a contribuir para um mundo melhor.

Sim, isso é fantástico: uma colaboração global com tantos artistas de diferentes países. E a crise também é global, em diferentes áreas. Quais são as questões mais urgentes que você acredita que a arte contemporânea, ou esta Bienal, deveriam abordar?
Estou tão convencido de que tudo está conectado... Não existe hierarquia nesse espaço de sofrimento. Hoje poderíamos dizer que estamos perplexos porque não conseguimos ter uma unidade de propósito, e estamos passando por sucessivas crises de todos os tipos: ambiental, climática, econômica. É também uma crise de paradigma. Nós, humanos, não entendemos o que significa ser humano. A crise ambiental está conectada à nossa crise racial. As questões religiosas e geográficas estão interligadas. E, no centro de tudo isso, está o ser humano.

“Para mim, fazer arte, curadoria, trabalhar em instituições culturais é uma possibilidade de ‘desmapear’, de ‘desensinar’, de questionar o que aprendemos, misturar tudo e propor outras formas de existir”

Nós falamos de artistas e pessoas que influenciaram sua vida. Há mais alguém que você mencionaria?
Minha avó. A pensadora mais importante. Estive doente esta semana, e minha mãe me mandou uma frase que minha avó costumava dizer: “Ah, você está doente? É só um vento passando.” E, quando o vento passa, ele faz as folhas velhas da árvore caírem para que novas folhas possam crescer. Para mim, isso é uma filosofia incrível para entender o mundo.

Falando sobre influência, existe algum movimento artístico que ressoe mais em você?
Não há apenas um. Trouxe música, muita poesia, gravuras, artistas de instalação, fotógrafos, dançarinos… todos eles são importantes. O mais importante é escutar, não apenas com o ouvido, mas com o corpo. E, se uma obra de arte consegue fazer isso, então ela é a minha favorita. Mas se oficialmente eu sou o chefe, o coletivo é mais importante. Acho que a curadoria também é sobre deixar ir. Dar espaço. Recuar. Acredito em uma liderança que se baseia na compaixão.

Mesmo que a Bienal seja gratuita, trazer o público é sempre um desafio, pois culturalmente essas pessoas se sentem afastadas da arte. Como isso será feito?
Estou, obviamente, muito interessado em tornar a Bienal o mais acessível possível para todos. E não basta sentar e rezar — é preciso agir. Vários projetos com escolas foram realizados antes mesmo da Bienal começar, para ativar diferentes comunidades em São Paulo. Criamos muitas estratégias para trabalhar com comunidades — formadas principalmente por jovens de áreas menos privilegiadas ao redor de São Paulo. Levar a Bienal a lugares como esses é tornar a Bienal acessível ao mundo.

As pessoas querem conhecer você também. E como é a sua rotina diária em Berlim?
A prioridade são meus dois filhos, a minha família na Alemanha e em Camarões. Mas também fui abençoado com tantos bons amigos, tantas pessoas queridas com quem compartilho poesia, filmes… E gosto de ter um pouco de tempo para mim mesmo. Sou uma pessoa muito espiritual e rezo muito. E me interesso pela história da arquitetura e das ciências. Gosto de ir a uma loja de discos e procurar vinis antigos. Então, a minha vida gira muito em torno da música.

*Christian Gebara é presidente da Vivo e diretor artístico da revista Velvet