Noventa minutos de documentário jamais dariam conta de cobrir toda a trajetória profissional do estilista Pierre Cardin. É por isso que a dupla de cineastas P. David Ebersole e Todd Hughes busca, antes de tudo, desvendar quem é o homem por trás do império da moda batizado com o seu nome, uma das marcas mais conhecidas do mundo.
Ao longo de “House of Cardin”, filme que estreia nas telas brasileiras em 14 de janeiro, vários entrevistados tentam decifrar o enigma, atualmente com 98 anos e ativo. Costureiros, especialistas de moda, personalidades e modelos arriscam rotulá-lo de alguma maneira. Seria ele um arquiteto que se aventurou pela moda? Um homem de negócios acima de tudo? Um empreendedor visionário?
Ou ainda um artista que perdeu a integridade por abusar do licenciamento? Afinal, Cardin foi pioneiro no segmento, emprestando o seu nome a uma extensa linha de produtos, muito além do universo fashion, como bicicletas, panelas, cortinas, cigarros, colchões e até latas de sardinha. O total bateu mais de 800 licenças, com 400 delas ainda ativas, presentes em mais de 120 países.
Nos testemunhos, incluindo o da atriz e ex-modelo Sharon Stone e o do designer Jean-Paul Gaultier, a palavra mais usada para definir o italiano naturalizado francês é mesmo “gênio”. Principalmente pelo modo como ele influenciou o setor ao longo de uma carreira de mais de sete décadas, passando por alta costura, prêt-à-porter, acessórios, design de móveis e licenciamentos.
“Pierre foi o homem que democratizou a moda”, disse Todd Hughes, durante o lançamento do filme em Veneza, que teve cobertura do NeoFeed. “Embora costurasse para um círculo elitista, o mesmo das marcas Christian Dior, Balenciaga e Chanel, foi ele quem quis tornar a moda acessível. Foi o primeiro a abaixar o preço para que mais pessoas pudessem comprar”, completou.
Hughes se refere ao prêt-à-porter, uma manobra arriscada de Cardin, mas que acabou ajudando-o a enriquecer ainda mais. Em 1959, ele foi o primeiro designer de alta costura a preparar uma coleção “pronta para vestir”, com desfile e tudo mais. Criticado pelos colegas estilistas pela sua “popularização”, ele chegou a ser expulso da Câmara da Alta Costura parisiense, sendo readmitido posteriormente.
“O mundo da moda, como o conhecemos hoje, não seria o mesmo sem os conceitos de licenciamento e de gestão de marca introduzidos por Pierre. Ele sempre soube que o designer cria um sentimento com suas peças. E é justamente isso que as pessoas querem comprar, ao optarem por determinada grife”, afirmou P. David Ebersole.
Consagrado pelas criações, principalmente as mais futuristas, com formas geométricas, o próprio estilista ajuda o espectador a entender como ele acumulou uma fortuna de 600 milhões de euros. Pelo menos esse é o valor estimado pela revista de economia francesa “Challenges”.
“A minha cabeça sempre esteve no futuro. Mas não no amanhã, que rapidamente será o ontem. Mais para frente”, contou no documentário o criador da gola-capuz, do bodysuit (macacão justo) e do terninho sem colarinho e sem lapela. “A moda até pode parecer supérflua em função da sua leveza. Mas os estilistas têm uma responsabilidade muito maior, a de mudar a face do mundo”, completou ele.
A produção traz tanto trechos de uma entrevista recente, concedida pelo costureiro à dupla de diretores em seu restaurante Maxim’s, em Paris, quanto imagens de arquivo. Seus depoimentos mais antigos resgatam quem foi Cardin no auge da carreira, quando não perdia a chance de se arriscar em territórios ainda não explorados.
O designer foi o primeiro a considerar mercados como o Japão, a China ou a Rússia para a moda. Ele também adotou o conceito de inclusão muito antes de a palavra ganhar o peso de politicamente correto. Conhecendo o poder da moda em inspirar milhões de pessoas, Cardin lançou modelos negras e asiáticas nas passarelas.
“Ele teve um papel instrumental ao contratar modelos que representavam a diversidade”, disse a supermodelo Naomi Campbell. Em seu depoimento no filme, ela usa um vestido branco estampado com círculos de uma antiga coleção de Cardin. “Uma roupa que parece ter sido feita hoje”, afirmou ela, ressaltando a modernidade de seu estilo.
“Para saber quem é Pierre Cardin de verdade, basta ouvi-lo falar. Para nós, a resposta começou a se revelar assim que passamos a segui-lo de perto, vendo-o conversar e interagir com as pessoas. Até porque Pierre é sempre ele mesmo. É autêntico em tudo o que faz”, comentou Ebersole.
O designer foi o primeiro a considerar mercados como o Japão, a China ou a Rússia para a moda
Visto em ação no filme, aprovando desenhos de jovens estilistas ou acompanhando a rotina das suas costureiras, Cardin chega a dizer que não sabe o que é tédio no trabalho. “Só fico entediado nas férias”, contou o estilista, rindo.
Nascido em San Biagio di Callalta, província de Treviso, Cardin tinha apenas dois anos quando seus pais, que eram agricultores, adotaram a França, fugindo do fascismo na Itália. Aos 14 anos, ele já era aprendiz de alfaiate em Saint-Étienne. Aos 17, foi trabalhar na maison Christian Dior em Paris, onde conseguiu fundar a própria “maison” de alta costura, aos 28 anos.
Nem a idade avançada consegue afastá-lo do quartel-general de sua marca, localizado na rue du Faubourg Saint-Honoré. Até hoje o designer aparece com regularidade no ateliê, conforme depoimentos de seus funcionários.
“Não sou o tipo de homem que se contenta com o que já foi feito e aceito. Estou feliz com o presente, mas nunca dou o meu trabalho como terminado”, disse Cardin, nos minutos finais do filme.
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