Bastava Sean Connery abrir um sorriso malicioso, de canto de boca, para nos fazer imediatamente recordar do agente secreto que ele imortalizou no cinema. O ator escocês foi a primeira e talvez a mais perfeita encarnação de James Bond nas telas.
Ele tinha tudo o que 007 poderia exigir do ator escolhido para inaugurar a franquia de filmes que se tornou uma das mais duradouras e mais rentáveis da história do cinema.
Com 1m88, Connery era um tipo másculo e de físico imponente, que impunha respeito só com o olhar. Seu humor sarcástico o deixava absolutamente à vontade na pele do personagem, saído da imaginação do escritor inglês Ian Fleming, em 1953.
Apesar da origem humilde, o filho de uma empregada doméstica e de um operário e motorista de caminhão de Edimburgo aprendeu rápido a se comportar em ambientes finos. Nunca teve problema em convencer de que tinha passado a vida inteira frequentando restaurantes e hotéis caros, esbanjando finesse e elegância por onde passava.
Connery ainda era bonitão – aos 20 anos, chegou a participar de um concurso de Mr. Universo. Charmoso e carismático, ele exercia naturalmente um magnetismo sobre as mulheres. Quem mais teria conseguido a façanha de ser eleito “the sexiest man alive”, em 1989, pela revista “People”, aos 59 anos?
Seu jeito sedutor traduzia o que era esperado na época do agente com licença para matar, sem que 007 precisasse se desculpar por ser irremediavelmente mulherengo. Intérpretes de espião que vieram depois já tiveram de suavizar essa faceta, como Daniel Craig.
Quando Craig assumiu o personagem, em Cassino Royale’ (2006), Bond já era mais romântico, em uma tentativa dos produtores de aumentarem o interesse do público feminino, ampliando a base de fãs da franquia.
De certa forma, a decepção amorosa que o agente sofre neste filme, ao se apaixonar por uma mulher que o trai, a funcionária do Ministério da Fazenda (Eva Green), é a justificativa para Bond ter se tornado um conquistador.
Connery não precisou se preocupar com nada disso, deixando aflorar a química sexual com o maior número de beldades possível no papel do agente. Curiosamente, o ator era homem de uma mulher só: passou seus últimos 45 anos casado com a pintora franco-marroquina Micheline Roquebrune.
Ter sido o “007 original”, o primeiro a dizer “Meu nome é Bond... James Bond”, é o principal legado deixado pelo ator, que morreu nesta sábado, 30 de outubro, aos 90 anos, durante o sono, em sua mansão em Nassau, nas Bahamas. Não foi por acaso que, apesar da versatilidade mostrada ao longo da carreira nas artes dramáticas, Connery nunca se livrou do estigma de 007.
Depois de debutar como o espião em 007 Contra o Satânico Dr. No (1962), o ator interpretou o personagem mais seis vezes. Mesmo desfrutando da fama trazida por Bond, que fez dele um astro mundial, a ideia era rodar, no máximo, mais três continuações.
Foi o que aconteceu em Moscou Contra 007 (1963), 007 Contra Goldfinger (1964) e 007 Contra a Chantagem Atômica (1965) – sendo que os dois últimos filmes excederam as expectativas de bilheteria. Alcançaram rendas de US$ 124,9 milhões e US$ 141,2 milhões, respectivamente.
Com o reajuste de inflação, 007 Contra a Chantagem Atômica teria obtido o equivalente a US$ 848,1 milhões, enquanto 007 Contra Goldfinger teria alcançado US$ 820,4 milhões de renda. Esses números já seriam suficientes para colocar as produções no segundo e no terceiro lugar no ranking de bilheteria de todos os títulos de Bond, perdendo apenas para 007 - Operação SkyFall (2012), estrelado por Craig e com faturamento de US$ 943,5 milhões.
Independentemente do retorno financeiro, como Connery não queria se tornar um escravo da franquia, ele logo se aventurou por outros gêneros. Rodou o suspense Marnie, Confissões de uma Ladra (1964) e a comédia Sublime Loucura (1966). Mas as produções não foram bem-sucedidas comercialmente, o que pressionou o ator a voltar em Com 007 Só se Vive Duas Vezes (1967).
Como o australiano George Lazenby não deu certo como o substituto de Connery em 007 a Serviço de Sua Majestade, em 1969, os produtores conseguiram, de novo, convencer o escocês a retomar o papel.
Ele voltou como o espião em 007 - Os Diamantes são Eternos (1971), garantindo que seria pela última vez. Só que a promessa foi quebrada em 1983, diante de um cachê milionário oferecido para 007 - Nunca Mais Outra Vez’, com o agente já envelhecido.
Ainda que nunca tenha se livrado completamente da sombra de Bond, Connery também obteve reconhecimento por outros papéis. Um exemplo foi o frei William de Baskerville, de O Nome da Rosa (1986), baseado na obra de Umberto Eco.
Pela performance como um policial irlandês de Chicago em Os Intocáveis (1987) veio a conquista de um Oscar de melhor ator coadjuvante. Connery também deixou sua marca como o pai de Harrison Ford em Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), com bilheteria mundial de mais de US$ 474 milhões.
Mas nada que se compare ao legado de 007, por mais que Connery gostasse de diminuir o impacto do espião em sua carreira, principalmente nas entrevistas que dava.
Na última vez em que falou com esta repórter, no Festival de Cannes, em 1999, o ator zombou do personagem. “Se herdei alguma coisa boa de Bond foi o gosto pelo golfe’’, disse, com o mesmo humor cínico do agente secreto.