O mercado brasileiro de biocombustíveis ganha um concorrente de peso com o biometano, alternativa sustentável ao gás natural, com potencial de atrair R$ 25 bilhões em investimentos até 2030 numa cadeia que envolve setores como petróleo, distribuição de gás, sucroalcooleiro, aterros sanitários e pecuária.
Combustível renovável derivado do biogás — produzido pela decomposição de materiais orgânicos, vegetais ou animais — o biometano, também chamado de “pré-sal caipira”, chega para substituir GLP, gás natural e diesel na descarbonização de frotas públicas e privadas.
Sua entrada no mercado decorre da regulamentação da política de biometano com a aprovação da Lei Combustível do Futuro, em 2024, que prevê programas específicos para cada tipo de biocombustível, como diesel verde (HVO), combustível sustentável de aviação (SAF) e biodiesel.
A partir de 2026, o gás renovável será obrigatório no gás fóssil comercializado no País. E importadores e produtores deverão comprovar anualmente a compra ou consumo mínimo de biometano proporcional ao volume de gás natural vendido.
A meta inicial é de 1% em 2026, podendo chegar a 10%. Como alternativa, os agentes da cadeia poderão adquirir o Certificado de Garantia de Origem de Biometano (CGOB), semelhante a um crédito de carbono. Com ele, empresas podem comprovar o uso de energia verde e financiar a produção de biometano sem consumir fisicamente o gás.
Embora a regulamentação da lei esteja destravando investimentos, ainda há pendências regulatórias que podem afetar o desenvolvimento do mercado.
Renata Isfer, presidente executiva da Abiogás (Associação Brasileira do Biogás e Biometano), entidade do setor, observa que, apesar da meta de 1% a partir de 2026, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) ainda precisa definir o percentual após análise de impacto regulatório.
“A tendência é o CNPE definir por um cálculo retroativo, considerando a produção do biometano quando a lei foi sancionada, em outubro de 2024”, diz Isfer. “Se o percentual obrigatório contar apenas a partir de janeiro de 2026, dificilmente alcançaremos a meta de 1% no primeiro ano.”
A indefinição, adverte o presidente executiva da Abiogás, pode atrasar a regulamentação do CGOB para meados de 2026: “O certificado criado pela lei precisa ser reconhecido nacional e internacionalmente, tem de ter credibilidade e transparência, com rastreabilidade dessa produção de biometano”.
A inclusão tardia do biometano na Lei do Combustível do Futuro gerou críticas de consumidores, preocupados com o possível aumento de custos para a indústria, que terá de pagar um “prêmio verde” para adquiri-lo.
Rebecca Gompertz, especialista da Argus– plataforma de inteligência para os mercados globais de energia e commodities –, afirma que os produtores buscarão maximizar esse prêmio ambiental. “A questão se isso vai ou não aumentar o preço do gás precisa passar por estudos para se entender o possível impacto”, afirma ela.
Logística e otimismo
Parte do otimismo vem do potencial de transformar o Brasil no maior produtor mundial de biometano. Diferentemente do gás natural, que é fóssil, o biometano vem de fontes renováveis e pode ser produzido continuamente.
Com composição química semelhante à do gás natural, pode ser usado nas mesmas aplicações — aquecimento, transporte, indústria — sem grandes adaptações, podendo ser injetado diretamente na rede existente.
A logística é um desafio: a rede de gasodutos se concentra na costa, enquanto as usinas estão no interior, exigindo transporte por caminhão, o que eleva custos e emissões de carbono.
Segundo a Abiogás, o Brasil tem 14 plantas em operação, com capacidade de 900 mil metros cúbicos (m³) por dia. Outras 35 aguardam autorização da ANP. No longo prazo, o país pode produzir até 120 milhões de m³ por dia, suficiente para substituir cerca de 70% do consumo atual de diesel.
Esses atrativos levaram empresas a retomarem projetos após a regulamentação, como a Petrobras. No início de setembro, a presidente Magda Chambriard anunciou que “está em conversas avançadas com players do setor” para investir em plantas existentes, com expectativa de anúncios no segundo trimestre de 2026.
“As grandes empresas de petróleo e gás estão realizando suas análises para decidir a melhor estratégia: produzir biometano diretamente, sozinhas ou em parceria, ou comprar o certificado no mercado para cumprir o mandato”, diz Gompertz, da Argus.
Em outros setores, a corrida já começou. A Gás Verde, maior produtora de biometano da América Latina a partir de aterros sanitários, está presente em seis estados.
“Temos duas plantas em operação no Rio de Janeiro e São Paulo, produzindo 160 mil m³ por dia, e nosso plano é chegar a 650 mil m³ até 2028 com novas plantas em seis estados”, afirma Marcel Jorand, CEO da Gás Verde, ao NeoFeed.
Além do uso industrial por clientes como Ambev, Nestlé, L’Oréal, Henkel, Saint-Gobain, Haleon, Ternium e Vesuvius, o biometano também abastece frotas pesadas de duas dessas empresas, L'Oréal e Henkel.
Jorand afirma que a companhia vai começar a produzir CO₂ verde, oriundo da corrente de biometano, após receber R$ 131 milhões do BNDES para construir duas plantas — uma delas de biometano, em Pernambuco, com capacidade de 45,6 mil m³ por dia, entrando em operação no segundo semestre de 2026.
O executivo vê o Brasil com vocação natural para o biometano, pelo volume de resíduos sólidos urbanos e pela força do agronegócio: “Hoje, o País ainda possui cerca de 3 mil lixões a céu aberto que precisam ser transformados em aterros sanitários e que podem ser aproveitados para recuperação energética.”
Outra gestora, a Orizon, recebeu aval da ANP para uma planta em Pernambuco. Outras três estão em análise. A empresa, com 17 aterros em 12 estados, tem uma planta em Paulínia e outras duas entrando em operação até o fim do ano, totalizando quase 400 mil m³ por dia.
“O plano é investir em plantas em 15 dos 17 aterros, sendo que 13 serão construídas entre 2026 e o final de 2028”, diz o CEO Milton Pilão. “A meta é atingir, em 2029, uma produção de 1,3 milhão de m³ por dia, somando aterros próprios e ecoparques de terceiros.”
Sobre o valor, Pilão afirma que a Orizon, como empresa de capital aberto, não pode divulgar o total, mas menciona que R$ 1,2 bilhão foi divulgado para cerca de metade do volume planejado, indicando que o capex total será muito maior.
Pilão destaca a circularidade do biometano: o lixo doméstico, ao invés de ser um passivo, vira gás para consumo, com forte apelo ambiental: “É o resíduo sólido urbano, ou seja, o lixo das nossas casas, que tem cerca de 50% de parcela orgânica, os restos de comida, que se decompõem e geram o biogás.”
Ele destaca vantagens sobre o biometano de etanol. “Não há sazonalidade, com produção estável 24 horas por dia, 365 dias por ano, garantindo estabilidade de entrega; além disso, os aterros são próximos aos centros urbanos consumidores, o que gera um grande ganho de distribuição”, diz.
Corredor sustentável
A Necta – braço da Commit, do Grupo Cosan – também tem planos ambiciosos para o biometano. Responsável pela distribuição de gás canalizado no Noroeste de São Paulo, atende 43 municípios com 1.500 km de rede e mais de 50 mil clientes.
A área de concessão está em região estratégica, com 135 usinas de cana-de-açúcar com potencial para produzir mais de 6 milhões de m³ por dia.
“Planejamos desenvolver uma rede para chegar aos principais clusters de usinas de biometano para capturar ou desbloquear pelo menos metade desse potencial, que é de quase 3 milhões de m³ por dia”, afirma o CEO, José Eduardo Moreira.
Segundo ele, as usinas ou aterros decidem investir — custo entre R$ 200 milhões e R$ 300 milhões por usina — e a Necta constrói a rede para transportar o gás.
“A área de concessão da Necta também é atravessada por rodovias importantes, com fluxo diário de 600 mil caminhões, abastecendo 3 mil postos”, diz o CEO da Necta. “O plano é substituir o diesel por biometano no transporte pesado, já que 10 milhões de litros de diesel são consumidos diariamente na região.”
A distribuidora já definiu 20 postos de combustível até o fim do ano, com 10 em operação. Há alinhamento com Comgas e Naturgy para mapear postos até o Porto de Santos, dando visibilidade da rede aos transportadores.
A estratégia vai além de São Paulo, com mapeamento de postos no Mato Grosso, Paraná (até o porto de Paranaguá) e sul de Minas, onde já há rede instalada para construir um corredor sustentável. Mato Grosso e Triângulo Mineiro têm potencial para virar hubs de biometano da pecuária.
Moreira destaca que a região sob concessão inclui Presidente Prudente, primeira cidade do Brasil 100% abastecida com biometano, via Usina Cocal, em Narandiba. Até dezembro, a Necta vai ligar cerca de 5 mil clientes dos setores residencial, comercial, industrial e postos.
Ribeirão Preto será a segunda cidade 100% a biometano do estado, com ligação da Usina São Martinho. “Isso significa que toda a rede municipal, incluindo residências, comércios, indústrias e postos de GNV, vai consumir exclusivamente biometano”, diz Moreira.
Prefeituras e governos estaduais também oferecem incentivos. São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro liberaram IPVA e reduziram ICMS de caminhões movidos a biometano.
Para Pilão, da Orizon, a regulamentação federal já impulsiona a demanda, mas os incentivos estaduais são essenciais, pois cada estado tem metas próprias de descarbonização: “A Orizon, assim como outras empresas do setor, prioriza estados que oferecem incentivos fiscais estaduais para a construção de suas plantas.”