O Brasil corre o risco de sofrer um apagão na rede elétrica ainda este ano, motivado por uma série de fatores que inclui excesso de geração renovável, consumo menor de energia em 2025 – em especial aos domingos – e agravamento do crescimento desordenado da geração distribuída (GD), alimentada por subsídios.

O alerta é de agentes do setor elétrico ouvidos pelo NeoFeed. A ameaça reforça a gigantesca contradição que cerca o sistema elétrico brasileiro: o risco de um apagão não por falta, mas por excesso de oferta de energia renovável em relação ao consumo.

O mecanismo técnico é simples: o sistema opera em equilíbrio a uma frequência de 60 Hertz (Hz). Se a geração supera o consumo, a frequência sobe. Acima de 60,5 Hz, proteções automáticas desligam as usinas, podendo levar a um colapso da rede.

Por isso, há um risco real de apagão, especialmente nos fins de semana, quando o consumo é baixo e a geração (principalmente solar) é alta. Se a geração exceder muito a carga (ou seja, o consumo de energia), o sistema pode acelerar e desligar. O risco é maior entre 10 horas e meio-dia.

O desequilíbrio aumentou em 2025 por causa do avanço da produção de energia renovável, que passou a ser mais acentuado em horários de baixíssima demanda de consumo energético, como nas manhãs de domingos e feriados. Por isso, a proximidade de festas de fim de ano, com redução de atividades da indústria e férias, fez reforçar o alerta.

Essa combinação está forçando o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a ampliar o curtailment (corte de geração) até o limite, como medida de segurança nas chamadas usinas centralizadas - as grandes usinas solares e eólicas, além de hidrelétricas e térmicas.

A intervenção nas usinas maiores, no entanto, pode não ser suficiente, pois uma grande parte da energia renovável é injetada na rede por parte de painéis em telhados e pequenas fazendas de GD - modalidade que não é controlável diretamente pelo ONS, pois está conectada às redes das distribuidoras.

Além desse desequilíbrio, os cortes ainda ampliaram a ameaça do curtailment que paira sobre as usinas centralizadas eólicas e solares nos últimos dois anos, com perda acumulada de um terço da receita total, ameaçando causar uma quebradeira num segmento que movimenta cerca de R$ 37 bilhões por ano.

“O problema central é que tanto a GD quanto as grandes usinas solares centralizadas geram energia simultaneamente, com pico de produção entre 10h e 12h”, afirma Donato Filho, CEO da consultoria Volt Robotics.

“Essa concentração de oferta, em um período em que a demanda nem sempre é alta, como nas manhãs de domingo, cria o excedente que ameaça a estabilidade da rede”, complementa.

Esse risco vem crescendo porque a capacidade instalada da GD já atinge 43,4 gigawatts (GW), um volume próximo à capacidade somada das usinas eólicas (35 GW) e solares centralizadas (14 GW).

A queda do consumo de energia em 2025, que está significativamente mais baixo que em 2024 – 10 mil megawatts médios (MWm) a menos – acaba dando mais peso ao excedente de geração e, por tabela, ao desequilíbrio do sistema elétrico. O clima mais ameno ao longo do ano até em cidades acostumadas a grande consumo de ar-condicionado, além de algum sinal econômico de redução da atividade econômica, podem influenciar.

Em pelo menos quatro domingos de 2025 (nos meses de maio, julho, agosto e outubro), o ONS chegou ao limite de cortes de usinas centralizadas para manter o equilíbrio entre demanda e consumo, indicando qual o dia mais provável para gerar um apagão.

Em agosto, os cortes ao longo do mês representaram 7% do consumo nacional. Em setembro, subiram para o equivalente a 8,8% da carga total do sistema. Para se ter uma ideia, a energia renovável cortada (6.792 MWm) foi 63% superior a toda a energia gerada no mês pela parte brasileira da Usina de Itaipu (4.172 MWm).

No domingo do Dia dos Pais (10 de agosto), o mais crítico do ano até agora, o corte atingiu 98% da geração disponível devido à baixa carga, deixando o País à beira do apagão.

Depois desse susto, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorizou o ONS a cortar emergencialmente qualquer tipo de geração para evitar um colapso, incluindo a de micro e minigeração distribuída (MMGD), os geradores de pequeno porte instalados junto aos consumidores.

“O ONS está focando em expandir os protocolos de corte para as distribuidoras como medida emergencial para o fim do ano, que é o 'plano zero'”, diz Donato Filho. “Mas o desafio é técnico e logístico, pois as distribuidoras não possuem tecnologia para desligar remotamente milhares de pequenas usinas.”

O monitoramento dos cortes em Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) também será problemático, pois a informação virá das distribuidoras e não estará disponível da mesma forma que os dados do ONS para eólicas e solares.

Falta de planejamento

O executivo da Volt Robotics observa que o risco atual de apagão expõe a falta de planejamento do setor elétrico, que precisou esperar o problema chegar ao limite para tentar achar uma solução. Segundo ele, os cortes de geração das usinas centralizadas deveriam ser o último recurso, e não o primeiro dos órgãos do setor.

“O impacto econômico do curtailment é severo, causando um prejuízo estimado de R$ 1 bilhão por mês para os cerca de 1.500 empreendimentos centralizados monitorados pelo ONS”, afirma Donato Filho. “Para as usinas centralizadas eólicas e solares, as perdas podem representar um terço da receita total, com algumas usinas específicas perdendo até 60% de seu faturamento.”

Os estados mais afetados pelos cortes no mês passado foram Minas Gerais (39% do total gerado, principalmente solar), Rio Grande do Norte (35%), Ceará (30%) e Pernambuco (23%).

É voz corrente no setor o drama vivido por empresas que investiram milhões em parques eólicos e solares e estão sendo proibidas de gerar energia, enfrentando sérias dificuldades para honrar seus compromissos, incluindo seus financiamentos, gerando risco de quebradeira no setor.

Existem dois tipos de perda: agentes com contratos de leilāo (energia de reserva e contratos por disponibilidade) são obrigadas a pagar ressarcimentos calculados com preços superiores aos dos próprios contratos de venda, enquanto agentes no mercado livre têm prejuízo ao precisar compar energia de reposição no mercado, ao Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), calculado diariamente pela Câmara de Comercializaçāo de Energia Elétrica (CCEE).

Além da ameaça de apagão, as entidades dos setores solar e eólico estão preocupadas com a impossibilidade de recuperar o prejuízo com o curtailment.

Os cortes de geração já causaram prejuízos superiores a R$ 1,9 bilhão apenas às usinas solares centralizadas, de acordo com estimativa da Absolar, associação do setor fotovoltaico. Nos últimos seis meses, algumas usinas tiveram entre 30% e 70% de sua produção reduzida.

“Não existe empreendimento que consiga sobreviver com cortes nesse patamar, uma vez que apenas 10% dessas perdas são passíveis de restituição, o que torna o cenário insustentável”, diz Barbara Rubim, vice-presidente da Absolar.

Segundo ela, as restrições estão relacionadas à Resolução 1.030 da Aneel, que limita a 10% (em média) a compensação financeira aos investidores afetados pelos cortes. Sem uma solução rápida, adverte Rubim, o segmento pode enfrentar um colapso empresarial, com R$ 30 bilhões em projetos paralisados devido à falta de previsibilidade regulatória.

Na avaliação de Elbia Gannoum, presidente da Abeeólica, associação do segmento eólico, o problema central do curtailment reside no Sistema Interligado Nacional (SIN), que obriga o gerador a vender energia no mercado e cumprir contratos, enquanto a operação do sistema é de responsabilidade do ONS, que decide quando e como as usinas devem gerar.

“A lei estabelece que o gerador está disponível para gerar e tem a obrigação contratual, mas não a responsabilidade pela operação ou pelas decisões do ONS", disse Gannoun, em entrevista recente ao NeoFeed. "Quando o gerador não pode entregar a energia por decisão do operador, ele precisa ser ressarcido."

De outubro de 2021 até 30 de setembro deste ano, de acordo com a entidade, as usinas eólicas tiveram um total de prejuízo estimado de R$ 5,9 bilhões.

Gráfico do dia 10 de agosto, recorde de curtailment: linha laranja ao alto (capacidade de produção de usinas solares e eólicas); linha azul descendo até a base (máxima geração permitida pelo ONS) e área densa (corte de geração)

Até gigantes do setor de energia estão sentindo o impacto. Durante o NeoSummit COP30, em setembro deste ano, o CEO da siderúrgica Gerdau, Gustavo Werneck, relatou sua frustração com os cortes de geração de 70% do parque solar Arinos, localizado na cidade de mesmo nome de Minas Gerais, em parceria com a Newave Energia. O complexo, inaugurado em meados deste ano, contou com investimentos de R$ 1,5 bilhão e tem com mais de 750 mil painéis solares.

“Tenho dificuldade de entender por que o Brasil no momento está despachando térmica a carvão e a gente não consegue operar os parques nossos totalmente renováveis”, afirmou Werneck. Segundo ele, a situação espelha “uma das grandes dores de cabeça que o industrial, que o empresário do Brasil segue tendo, que é o tema de energia”.

A Eneva, que opera o parque solar Futura 1 – um dos maiores do País, situado em Juazeiro (BA) -, teve o maior nível de curtailment de sua série histórica no terceiro trimestre de 2025, ao deixar de gerar 185 GWh por determinação do ONS, sendo que a geração líquida do parque somou 300 GWh no período, com redução de 16% na base anual. Procurada, a Eneva preferiu não se manifestar.

Em comunicado ao mercado na semana passada, outra empresa, a Comerc Energia, revisou a sua projeção de lucro operacional para o exercício 2025 por causa do “aumento expressivo e persistente” do curtailment, conforme alega a empresa.

Os cortes em suas usinas nos dois últimos trimestres foram de 34% e 20%, respectivamente, o que deve reduzir o seu Ebitda projetado de R$ 1,3 bilhão para entre R$ 1,05 bilhão e R$ 1,15 bilhão.

No segundo trimestre de 2025, a Comerc registrou um volume de geração centralizada nas usinas solares de 536,5 GWh – queda de 12,3% ante o mesmo trimestre do ano anterior. Nas plantas eólicas, o volume de geração da Comerc aumentou 4% no terceiro trimestre em relação ao mesmo período de 2024, sendo que o curtailment cresceu mais, 11%.

“Uma solução para o curtailment vem sendo discutida, inclusive no Congresso Nacional, para endereçar os cortes gerados por restrições do sistema e as políticas públicas, além de um rateio mais adequado entre os agentes do setor”, diz trecho da nota enviada pela Comerc Energia ao NeoFeed, na qual reforça o compromisso da empresa com a sustentabilidade, a previsibilidade e o equilíbrio do setor elétrico brasileiro.

“A solidez da nossa operação e a robustez da nossa gestão de riscos nos permitem atravessar esse cenário com resiliência e com o firme compromisso de mitigar os impactos decorrentes dessa conjuntura, seguindo, assim, o esforço contínuo para manter nossos resultados o mais próximos possível da projeção inicial”, complementa a nota.

Medidas urgentes

O especialista da Volt Robotics diz que uma maneira de atenuar o risco imediato de apagão é adotar medidas voltadas para aumentar o consumo e reduzir a oferta de energia no período da manhã.

Entre elas, adoção de tarifas inteligentes, diminuindo o custo de energia no período da manhã para incentivar o consumo nessa faixa horária, redução do PLD mínimo no período das 8h às 14 horas e oferta de flexibilidade para as hidrelétricas e térmicas, para que sejam mais bem remuneradas se fornecerem mais energia no final do dia.

“Essas são medidas de curto prazo, para atacar o risco de apagão, mas há outras, como incentivar as usinas solares a usarem baterias de armazenamento para que a energia gerada no pico da manhã seja injetada na rede no final do dia, quando a demanda é maior”, diz Donato Filho. “Mas para isso é preciso reduzir o imposto de importação de baterias", complementa. O imposto de importação pode chegar a até 80% do custo total do sistema, dependendo da especificação da bateria.

A solução estrutural, segundo ele, passa por transformar as distribuidoras em "operadores de sistema de distribuição", dando-lhes tecnologia e capacidade para gerenciar a rede localmente, oferecendo incentivos para que os consumidores ajudem a equilibrar o sistema.

Outras medidas estão sendo discutidas no âmbito da MP 1.304, que prevê reforma no setor elétrico, e pelos órgãos reguladores, como Aneel e ONS.

O relator da MP, senador Eduardo Braga (MDB-AM), defendeu na audiência pública recente que a solução passa por dar sinal econômico adequado à geração, ao armazenamento e ao consumo, além de modernizar as redes elétricas e recuperar a segurança hídrica.

“Se nada for feito, o sistema pode entrar em colapso”, advertiu o relator da MP. “O consumidor paga hoje cerca de R$ 770/MWh, enquanto o custo das tecnologias caiu dez vezes desde 2015; é inaceitável que essa redução não tenha sido repassada.”

A Aneel, por sua vez, ainda está estudando medidas. Em memorando recente, a diretora Agnes da Costa pediu a análise jurídica da Procuradoria Federal junto à agência sobre a possível inclusão dos sistemas de micro e minigeração distribuída (MMGD) no rateio do curtailment.

Segundo ela, embora o avanço da geração distribuída tenha impacto direto sobre o equilíbrio do sistema, a tecnologia não integra o escopo atual da consulta por razões regulatórias e pela impossibilidade de corte físico da geração pelo ONS.

Procurada, a Aneel confirmou que a agência ratificou que o ONS e distribuidoras devem tomar todas as ações necessárias para manter a integridade e o funcionamento adequado do sistema elétrico, mas destacou que, de imediato, não se vislumbra desligamento especificamente da MMGD.

Questionada sobre medidas que a agência analisa para evitar esse risco de apagão e atenuar os efeitos do curtailment, a Aneel afirmou que a segurança da operação do sistema interligado é competência legal do ONS.

“Com relação às ações para reduzir os efeitos do curtailment, é uma agenda ampla, que passa por aprimoramentos regulatórios, ações operacionais por parte do ONS, eventuais mudanças nos critérios de contratações de geração, até mesmo eventuais mudanças legislativas”, diz a nota da Aneel.

Já a ONS, também por meio de nota, esclarece que não há mecanismos técnicos e regulatórios para que o operador possa gerenciar a operação dos excedentes gerados por MMGD porque estes estão conectados diretamente às redes das distribuidoras.

Quanto às medidas para assegurar o equilíbrio entre carga e geração, o órgão especificou o que tem feito: "O ONS vem tratando do tema no Grupo de Trabalho (GT) do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), do qual o Operador faz parte, detalhando a situação e como tem feito a gestão destes excedentes de geração, além de tratativas junto à Aneel para estabelecimento de um Plano Emergencial buscando novas ações e maior flexibilidade na operação."

De acordo o ONS, o total de cortes da energia este ano foi de 18,2% da energia eólica disponível no País  e de 26,2% de energia solar, até domingo, 19 de outubro.

A ameaça de ofensiva sobre a MMGD acabou gerando uma reação da ABGD, entidade do setor de geração distribuída.  “Manifestamos profunda preocupação com o rumo das discussões que tentam impor restrições e penalidades à geração distribuída sob o pretexto de resolver falhas estruturais do sistema elétrico brasileiro”, diz nota da ABGD.

“De um lado temos 45.000 empresas atuando em GD, segundo dados do Sebrae, e de outro, quase uma dúzia de empresas inconformadas por terem perdido mercado para o próprio consumidor”, completa a nota.

Donato Filho, da Volt Robotics, porém, reforça que a proximidade de dezembro, com redução de consumo e festas de fim de ano, agrava o risco de um apagão.

“Aumenta a chance de o ONS cortar eólicas e solares e as distribuidoras entrarem contando a geração distribuída”, adverte. “O risco é de termos um desequilíbrio, por falta de controle mesmo, principalmente entre as 10h e 12h.”