Antes mesmo de desembarcar oficialmente no Brasil, a Keeta, braço de operação internacional da chinesa Meituan, já está movimentando o mercado local de delivery. Especialmente na esfera legal e, em particular, com a 99Food. E esse caldeirão ganhou um novo tempero no início desta semana.
No mais recente episódio dessa disputa jurídica, a 3ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Foro Central Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu a favor da Keeta em uma ação movida pela companhia contra a 99Food, marca da 99 no segmento.
Em decisão proferida na segunda-feira, 20 de outubro, o juiz Fábio Henrique Prado de Toledo entendeu que as cláusulas de banimento que estariam sendo impostas pela 99Food, impedindo alguns restaurantes estratégicos de negociarem com a Keeta, são ilegais.
Na ação, a Keeta alega que, ao relançar seu serviço de delivery, em junho deste ano, após encerrá-lo em 2023, a 99 passou a oferecer pagamentos antecipados para grandes cadeias de restaurante. Esses valores viriam acompanhados da proibição dessas redes negociarem com a plataforma chinesa.
O magistrado declarou a nulidade dessas cláusulas contratuais, citando a violação aos princípios constitucionais da livre concorrência e da isonomia. E determinou que a 99Food se abstenha de recorrer a essa prática contra qualquer parceiro.
A decisão também estabelece que os valores já pagos pela 99Food aos restaurantes até o momento em que esses parceiros contratem, eventualmente, a Keeta, não precisam ser devolvidos, pois correspondem ao período em que a exclusividade foi efetivamente observada.
Ao mesmo tempo, a 99Food está proibida de inserir tais cláusulas em novos contratos que venha a celebrar, sob pena de multa de R$ 100 mil por acordo em que estabelecer essa restrição.
Em contrapartida, o juiz indeferiu o pedido de comunicação da decisão pela 99Food em seus canais de comunicação e perante seus parceiros contratuais. E julgou improcedente o pedido de pagamento de indenização por perdas e danos, por ausência de comprovação de dano efetivo.
Como contracautela, o magistrado também estabeleceu algumas determinações para a Keeta, nos casos em que a empresa venha a firmar contrato com algum restaurante parceiro da 99Food que tenha assinado um acordo com a cláusula de exclusividade objeto da ação.
Além de informar a celebração do contrato e identificar o parceiro, a Keeta deverá depositar judicialmente, no prazo de 15 dias, o valor total correspondente à multa rescisória e demais encargos previstos no contrato em questão pelo descumprimento da cláusula de exclusividade.
Em comunicado, a Keeta afirmou que, desde que anunciou seu investimento no Brasil, firmou seu compromisso com o "desenvolvimento de um mercado onde todos possam ter mais escolhas. E acrescentou:
"Agora, os restaurantes - inclusive aqueles anteriormente impedidos pela 99Food - estão livres para decidir pela plataforma que oferecer o melhor serviço, todos os dias". Procurada, a 99Food não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
No processo, entre outras alegações, a 99Food argumentou que a exibição da lista de restaurantes e contratos firmados pela empresa – um dos pedidos da Keeta – configurava uma tentativa de espionagem empresarial para obter segredos de negócio e alavancar a entrada da rival no mercado.
A empresa também negou a existência da “cláusula de banimento”, que chamou de “construção puramente retórica da autora”. E observou que tais cláusulas são de exclusividade parcial, lícitas, proporcionais, temporárias e firmadas mediante adesão voluntária dos parceiros em contrapartida a aportes financeiros.
Em sua argumentação, a 99Food defendeu ainda que tais estratégias são pró-competitivas e necessárias para um “agente entrante” enfrentar o virtual monopólio do iFood, que detém mais de 80% de participação nesse segmento no mercado brasileiro.
O fato é que, com a Keeta prestes a entrar em operação no País – o que está previsto para o mês de novembro - essa disputa no front jurídico ainda está longe do fim e promete novos desdobramentos, dado que esse não é o único embate legal envolvendo as duas partes.
Em agosto deste ano, uma semana depois de entrar com a ação contra a 99Food no Foro Central de São Paulo, a Keeta registrou uma denúncia, com as mesmas acusações, no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o órgão que controla a concorrência no Brasil.
A queixa da companhia foi acompanhada de supostos contratos que a 99Food estaria estabelecendo com os restaurantes, que incluiriam as cláusulas vetando qualquer possibilidade do parceiro em questão firmar um acordo com a rival chinesa.
Segundo a empresa, até aquele momento, a 99Food teria abordado mais de 100 redes no País, oferecendo pelo menos R$ 900 milhões em pagamentos antecipados, vinculados à assinatura de contratos nesses moldes.
“Esse valor é quase equivalente aos R$ 1 bilhão que a Didi (que é dona da 99) anunciou para reiniciar a 99Food”, ressaltou a companhia na denúncia registrada junto ao Cade, no qual solicitou a suspensão imediata das cláusulas de bloqueio e a proibição de sua inclusão em futuros contratos.
Em paralelo, também em agosto, a Keeta entrou com um segundo processo na Justiça acusando a 99 de concorrência desleal e uso indevido de marca, a partir da compra, no Google Ads, de palavras-chave com o termo Keeta e correlatos.
De acordo com a empresa, ao pesquisar essas palavras, o consumidor visualizava anúncios patrocinados da 99Food, deslocando o resultado orgânico da Keeta para posições inferiores no serviço de busca.
Nesse caso, a Keeta teve deferido o pedido de concessão de tutela de urgência para que a rival cesse imediatamente essa prática, sob pena de multa diária mínima de R$ 20 mil, além do pagamento de indenização por danos morais de R$ 100 mil.
A 99Food, por sua vez, não ficou parada. A empresa também foi à Justiça contra a Keeta, alegando que a concorrente teria imitado elementos distintivos da marca 99, incluindo o design da plataforma 99Food.
Na ação, a companhia destacou a semelhança na combinação de cores, estilo das fontes e uso de elementos gráficos, como os dois “ee’s” invertidos que formariam um efeito semelhante ao número 99.
Essa disputa tem como pano de fundo um menu substancial de recursos. Além do plano de R$ 1 bilhão anunciado pela 99 para, entre outras iniciativas, relançar o 99Food, esse imbróglio passa pela projeção da Keeta de investir R$ 5,6 bilhões no Brasil nos próximos cinco anos.
Essas somas bilionárias não se restringem à dupla. Líder, até aqui, com sobras nesse mercado, o iFood também decidiu abrir seus cofres. Em agosto, a empresa divulgou que planeja investir R$ 17 bilhões no Brasil para o ano fiscal que vai de abril de 2025 até março de 2026.
(A matéria foi atualizada às 13h30 com as informações sobre a contracautela estipulada na decisão judicial)