Há oito meses, as reuniões de trabalho tornaram-se cada vez mais presentes no dia a dia de Guilherme Barbosa Silva. Na última delas, o tema foi a criação de um modelo de inteligência artificial capaz de prever os funcionários mais propensos a se desligar da companhia para encontrar formas de retê-los.

O desenvolvedor tem apenas 16 anos e a empresa em questão é a JBS. E essa rotina atribulada do menino é parte de uma agenda mais ampla e recente da J&F, holding que controla a companhia de alimentos, para lidar com um desafio histórico: o déficit na formação de profissionais de tecnologia no Brasil.

Silva é um dos 145 alunos matriculados na Germinare Tech, uma das escolas de negócios do Instituto J&F. Gratuita e lançada em 2022, ela oferece ensino médio integrado ao técnico para a formação de desenvolvedores e analistas de dados.

Com uma grade que mescla o currículo tradicional e matérias específicas da área, a escola abre as portas para que os estudantes façam estágios nas empresas do grupo. Esse menu inclui, além da JBS e do instituto, negócios como Swift, Seara, PicPay, Banco Original, Eldorado Brasil, Flora e Âmbar Energia.

“Estudo conceitos como inteligência artificial e machine learning”, diz Silva, ao NeoFeed. Ex-aluno da rede pública, em Carapicuíba, zona oeste de São Paulo, ele acaba de completar o primeiro ano na Germinare TECH e já estagia no próprio instituto. “E tenho a oportunidade de desenvolver projetos reais para o grupo.”

Da teoria à prática, a decisão da J&F de criar a Germinare Tech veio do entendimento de que o apagão de profissionais de tecnologia, que já era um problema crônico no País, se intensificou no pós-pandemia.

A Covid-19 amplificou a demanda por tecnologia e, por consequência, acelerou a procura por profissionais da área. Inclusive por empresas do exterior, que, a partir da consolidação do trabalho remoto, passaram a buscar desenvolvedores brasileiros para preencherem seus quadros.

Essa nova concorrência ajudou a inflar os salários pagos no setor e só reforçou a disputa que já vinha sendo protagonizada por esses profissionais. Ao mesmo tempo, todo esse contexto só ampliou a distância entre a demanda e a velocidade de formação da área no Brasil.

Dados da Federação das Associações das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação (Assespro) dão a medida desse desafio. Segundo a entidade, o Brasil vai demandar 800 mil novos profissionais até 2025. E tem capacidade para formar, no máximo, 500 mil nesse prazo.

“Se as empresas não enfrentarem esse gap com iniciativas mais estruturais, não tem uma bala de prata”, diz Raul Moreira, diretor do Instituto J&F. “Do contrário, vão ficar reféns do imediatismo, de salários mais altos e de pessoas que não estão necessariamente alinhadas com as suas necessidades.”

Moreira observa que, com cerca de 1,5 mil desenvolvedores em suas operações, a J&F já tinha uma boa estratégia de formação e retenção desses profissionais. Mas que, diante do agravamento desse cenário e de um turnover anual de cerca de 300 funcionários na área, decidiu que era preciso ir além.

Como parte dessa “lição de casa”, um dos pilares que guiaram a estruturação da Germinare TECH foi a percepção da necessidade de investir desde cedo na formação desses profissionais para endereçar tais desafios.

“A nossa grade antecipa uma série de aprendizados do ensino superior”, explica Moreira. “Com isso, criamos um ciclo de formação mais longo e, ao mesmo tempo, conseguimos alinhar, desde o início, esses jovens com os conceitos e a cultura do grupo, além de casar e reforçar isso com a prática.”

Com 150 vagas disponíveis este ano e o plano de ampliar para 200 em 2025, a Germinare TECH é aberta a estudantes das redes pública e privada. Hoje, 40% dos alunos matriculados vêm de colégios do Estado.

A seleção inclui testes que, além do português, avaliam o potencial do candidato em campos como o raciocínio lógico. São selecionados até 300 candidatos para um curso de três meses, que vale como o último filtro para a escolha dos aprovados.

“A prova é desenhada mais para ver a aptidão e não o conhecimento na área”, diz Paulo Vaz, gerente do projeto e coordenador da Germinare TECH. “E, nesses três meses iniciais, o candidato vive a mesma dinâmica dos alunos da escola, o que permite que a nossa escolha seja muito mais assertiva.”

Se o processo é rigoroso, a grade é flexível. Além do currículo obrigatório e de temas como banco de dados, a cada ano, a escolha dos conteúdos adicionais tem a chancela dos gestores e demandas das empresas da J&F. E inclui conceitos em alta no mercado. Em 2023, a ênfase foi em IA e dados.

Já a rotina dos alunos é intensa. Com uma carga de 1,6 mil horas no curso, os estágios são cumpridos das 8h às 12h e as aulas são ministradas das 13h30 às 21h. Todas as refeições são ofertadas pela escola, assim como os notebooks usados pelos estudantes.

Mão na massa

Parte da primeira turma da Germinare TECH, quem está acostumada a dividir seu tempo entre as salas de aula e a carreira é Lavínia Ferreira de Brito. Aos 16 anos, ela é estagiária da Swift desde 2023 e, ao lado de outros quatro colegas, já responde por projetos relevantes para a marca.

O grupo está desenvolvendo uma plataforma para gerenciar a frota própria e os prestadores de serviço que viabilizam o delivery de produtos da marca aos consumidores. A ferramenta entra em testes neste mês.

“Estar na companhia é totalmente diferente”, diz a adolescente. “Além de aplicar um conhecimento técnico mais avançado, você aprende a trabalhar em equipe, gerir projetos, cumprir prazos e a se portar profissionalmente.”

Essa última questão é reforçada por Carlos Eduardo Santi, um dos professores da escola. “Eles precisam se comportar como se estivessem numa empresa, porque, de fato, estão”, diz. “E, na maioria das escolas e universidades, a oportunidade está do lado de fora. Aqui, basta atravessar um corredor.”

Raul Moreira, diretor do Instituto J&F

Hoje, 72% dos alunos da Germinare TECH já estagiam nas empresas da J&F. Uma das responsáveis por fazer essa ponte é Ana Paula Leão, gerente de soluções de TI do instituto, que também ressalta as vantagens da abertura – aliada à autonomia – dada aos jovens.

“Eles aprendem muito rápido, porque entendem que não dá para brincar”, afirma Leão. “O usuário está ligando, os problemas estão acontecendo e eles têm que resolver. E o fato de darmos essa oportunidade é um estímulo para que eles sigam carreira aqui.”

Com uma equipe de 20 analistas e 13 estagiários, ela também está à frente da J&F Tech, braço recente do instituto que desenvolve softwares para outras operações da holding. E parte das primeiras entregas dessa unidade já conta com uma boa contribuição dos estudantes.

Um desses projetos é a criação de ferramentas que vão compor o Sempre, um superapp da área de recursos humanos da JBS. Entre outros recursos, a plataforma vai trazer as vagas disponíveis na operação e a sugestão de trilhas e cursos de capacitação para os 150 mil profissionais da empresa.

Diversos estagiários estão botando a “mão na massa” na iniciativa. Dos integrantes do Gedai, grupo com foco em IA, a alunos como Gustavo Okamoto Ventura, de 17 anos, e Rafaella Guimarães Venturini, de 16 anos.

A dupla desenvolveu a Midiateca. A plataforma faz uso de IA e inclui sistemas de recomendação, avaliação, interação entre usuários e de reserva de livros disponíveis na biblioteca da holding para que os profissionais aperfeiçoem seus conhecimentos.

“Você se especializa em alguma área, mas, pela demanda, acaba aprendendo um pouco de tudo”, conta Ventura. “E não apenas a resolver problemas, mas também como inovar, porque trabalha o tempo todo com conceitos mais recentes nesse mercado.”

Ele foi o primeiro estagiário a sair dos corredores da Germinare TECH. E sua vocação vem de família. O pai trabalhou muitos anos com TI, assim como o tio, que ainda atua na área. E que, ao saber do seu ingresso na escola e na carreira, disse que o menino tinha sido convertido para o “lado bom da força”.

Ao contrário do colega, o desejo inicial de Rafaella Venturini era seguir carreira em medicina. Mas ela mudou de planos quando estudava em uma escola pública na zona norte de São Paulo e teve um primeiro contato com robótica.

“O que mais me atraiu foi a questão de resolver um problema de maneira lógica e de usar ferramentas para isso”, diz ela. “E a nossa oportunidade é muito grande. Estamos numa empresa gigantesca e com acesso a trabalho. Pouquíssimas pessoas têm essa chance.”

Há mais projetos com a assinatura da Germinare TECH. Entre eles, os sistemas de controle de pessoas jurídicas e a infraestrutura de mensagerias do PicPay. Em paralelo, outra iniciativa está em curso de olho na extensão dos laços com esses estudantes: a criação de uma faculdade na área.

“Estamos elaborando o curso, a princípio, de engenharia de software, e todo o plano pedagógico”, conta Paulo Vaz. “A ideia é que seja lançado em 2025, quando a primeira turma vai se formar no ensino médio e já terá a opção de seguir conosco.”