Em julho de 2022, o consórcio Azul, com Ultragaz e Bahiana Distribuidora de Gás, empresas do grupo Ultra, e o consórcio Superdourado, formado por Supergasbras e Minasgás, do grupo SHV, anunciaram uma parceria para compartilhar ativos operacionais na distribuição de GLP, o popular gás de cozinha.

No fim de março deste ano, o acordo foi aprovado sem restrições pela Superintendência Geral (SG) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Mas a operação, que parecia seguir sem grandes sobressaltos até a decisão definitiva do órgão, viu esse percurso ameaçado na última semana.

A pedra no caminho atende pelo nome de Copagaz, distribuidora da Copa Energia. A empresa alega que o acordo mascara uma fusão disfarçada e foi aceita como terceira interessada no processo. Ao mesmo tempo, o tribunal do Cade aprovou por unanimidade a extensão da análise sobre o caso por até 90 dias.

Com a inclusão da rival, o clima promete ficar inflamado até agosto, quando o martelo deve ser batido. Nesse contexto, o NeoFeed conversou com fontes que falaram, sob condição de anonimato, sobre o modelo proposto e os riscos para o acordo - do sinal verde, com duros remédios, ao veto total.

“Existem bons argumentos para aprovar, mas se espera mais cuidado do Cade”, diz um especialista em direito concorrencial. “São dois grandes players de um mercado oligopolizado e que o próprio órgão já destacou como problemático e que já passou por nove investigações de cartel.”

A disputa envolve, de fato, gigantes. A Ultragaz e a Supergasbras ocupam, respectivamente, a segunda e a quarta posição do setor, com fatias de 23,6% e 20,6%, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Combustíveis (ANP). No outro canto do corner, a Copagaz tem um market share de 23,7%.

Protagonizada por três dos quatro maiores nomes do setor, a disputa está no radar de outros atores, o que deve aquecer ainda mais essa batalha. Há duas semanas, por exemplo, Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia, engrossou o coro para que o Cade olhe com mais atenção o caso.

“A essa altura do campeonato, o mercado está de olho nesses desdobramentos”, diz a mesma fonte. “E, a contrário dos ritos na Superintendência, a decisão do tribunal do Cade vai a plenário, vai estar no YouTube, todos terão acesso.”

No despacho em que aceita o recurso da Copagaz, Lenisa Prado, conselheira do Cade, ressaltou aspectos que não foram “adequadamente enfrentados” pela SG. Entre eles, os diferentes cenários com mercados relevantes afetados pela operação e o acesso pelos parceiros de dados concorrencialmente sensíveis.

Combustível da discórdia

O ponto de partida para a associação entre Ultragaz e Supergasbras – e de toda a discórdia – são os contratos de congêneres. Neles, as distribuidoras pagam por serviços como espaço em tancagem, recebimento, armazenamento e engarrafamento do GLP nas estruturas de rivais.

Partindo desse modelo, comum no setor, mas restrito a volumes menores, a dupla submeteu a parceria ao Cade. Na época, a Ultragaz, dona de uma receita líquida de R$ 11,4 bilhões em 2022, informou que o acordo ampliaria sua presença de 19 para 25 bases de engarrafamento, dando maior segurança de abastecimento e aprimorando o serviço nessas regiões.

O grupo deu ênfase ainda à captura de eficiências operacionais, a partir do uso de capacidades ociosas das duas companhias. E ressaltou que isso não se estenderia a estratégias e investimentos em esferas como logística, compras e área comercial. Ou seja, além do envasamento, elas seguiriam como rivais.

A Ultragaz está na linha de frente dos embates jurídicos por parte dos dois consórcios no Cade

Além de dar segurança jurídica à parceria, o acordo é visto como uma opção viável para atender a demanda de interiorização no mercado de GLP. Liberando, em paralelo, recursos para serem alocados em novas áreas, como aconteceu na compra da NEOgás, de gás natural comprimido, no fim de 2022.

Conforme apurou o NeoFeed, a Ultragaz, que lidera a dupla nesse embate jurídico, assessorada pelo BMA Advogados, segue confiante em um veredicto positivo. Ela se apoia no parecer de 187 páginas de Carlos Ragazzo, ex-superintendente-geral do Cade, e na visão de que o acordo já passou por um crivo rigoroso, de mais de 200 dias.

“A SG fez uma análise profunda, visitou bases, enviou 129 ofícios ao mercado, num processo de mais de mil páginas”, diz uma fonte a par dos trâmites. “E entendeu que não há concentração horizontal e unificação das decisões.”

Não é essa a percepção da Copagaz, que reportou uma receita líquida de R$ 10,5 bilhões em 2021, último dado disponível, e está sendo assessorada no caso pelo Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados.

Para a empresa, o acordo vai além de um simples contrato de congêneres e transforma a exceção em regra. Dado que, segundo a companhia, essa prática, apesar de corriqueira, é pontual e tem um impacto marginal sobre a operação total das empresas do setor.

Sob essa ótica, a Copagaz alega que a parceria não se restringe à dinâmica operacional e abre caminho para um duopólio, a partir de brechas para que as empresas compartilhem dados sensíveis – como custos e volumes –, iniciativas comerciais e aportes.

“O acordo envolve o coração do negócio. As bases concentram a maior parte do capex do setor e estão altamente vinculadas à definição dos demais investimentos e estratégias”, diz uma fonte do setor. “Eles vão estar ligados por um cordão umbilical. É impossível seguirem como rivais da porta para fora.”

Na contramão desses argumentos, os consórcios ressaltam que incluíram travas e uma série de salvaguardas para estabelecer esses limites. Segundo outra fonte, mesmo com essa governança, há riscos no modelo e falhas na condução da análise.

“Por mais que se coloque um chinese wall, uma vai ter ciência dos volumes da outra e as equipes estarão no mesmo espaço”, diz. “A SG negociou ajustes, mas, assim como as travas, eles são confidenciais, o que dificulta até o monitoramento de desvios.”

Outro ponto questionado é a eficiência, a partir do uso de capacidades ociosas das duas parceiras. Na visão dos críticos, se essa é a justificativa, faria mais sentido trocar o arranjo fechado por um modelo que incluísse qualquer empresa, o que ampliaria o ganho de escala.

Com base em um parecer da consultoria Ferres, anexado ao processo, a Copagaz rebate outros racionais das duas empresas, como a complementaridade das operações. Segundo o documento, das 35 bases em 15 estados brasileiros, há sobreposição em 29 localidades, de 9 estados.

A Ferres ressalta que, em alguns estados, a participação de mercado somada alcançaria patamares elevados. Casos, por exemplo, da Bahia, com 71,93%; e de Minas Gerais, com 63,99%, o que dificultaria aos demais players fazer frente a essas operações.

Entre outros efeitos, o parecer frisa que, ao igualar custos, ter uma atuação coordenada e tal escala, a dupla não teria incentivos para competir entre si e repassar os ganhos de eficiência aos consumidores. Como reflexo, haveria uma pressão na elevação dos preços, em alguns casos, na faixa de 12% a 13%.

Confronto de narrativas

Se a Copagaz alega que os consórcios construíram uma narrativa para disfarçar uma fusão, nos bastidores, sua tese também é alvo de críticas. Para algumas das fontes, a empresa busca criar confusão sobre uma prática que é relevante no setor.

“Se os acordos de congêneres fossem exceção, como dizem, eles não estariam tão preocupados em se opor”, diz uma delas. “E há exemplos de compartilhamento de infraestrutura em outros setores, nesses mesmos moldes, sem prejuízo para a concorrência.”

No que diz respeito à concentração gerada, um dos argumentos dos consórcios no processo é o fato de que, mesmo onde há sobreposição, o modelo e a busca por eficiência se justificam, pois, no detalhe, o market share não é uniforme nessas regiões.

Uma das bases de envasamento da Copagaz

“É um acordo operacional, de fato, e não uma fusão. O Cade nunca permitiria algo nessa linha com empresas desse porte”, diz outra fonte. “O problema é que, com esse modelo, a cerca fica mais frouxa e o lobo está mais próximo do galinheiro.”

Ela acrescenta que a Copagaz tem “quase obrigação” de reclamar. “São dois dos maiores players que estão se associando e que vão se tornar mais eficientes”, afirma. “E num momento em que a Copagaz ainda está integrando uma grande aquisição, antes de capturar as sinergias dessa transação.’

Nova batalha, disputa antiga

A aquisição em questão, que alçou a Copagaz à liderança do setor, foi a compra da Liquigás, em um consórcio com a Itaúsa. Anunciada no fim de 2019 a transação de R$ 3,7 bilhões foi aprovada um ano depois pelo Cade e teve como terceiras interessadas justamente a Supergasbras e a Ultragaz.

Dois anos antes, em mais um capítulo dos embates protagonizado por esses nomes, a Ultragaz viu sua proposta para incorporar a Liquigás barrada pelo órgão. Em 2017, o Cade já havia vetado a compra da rede de combustíveis Alesat pela Ipiranga, outra empresa do grupo Ultra.

Conforme apurou o NeoFeed, nos consórcios, a expectativa é de que o histórico recente de insucessos do grupo Ultra não tenha influência na decisão relacionada a essa nova batalha, já que a visão é de que são propostas de naturezas diferentes.

Na Copagaz, a sensação é de que as derrotas colecionadas pela rival podem sim ter um peso no veredicto, seja a favor ou contra à rival. A avaliação, porém, é de que, o jogo recomeça do zero, com o corpo a corpo junto aos sete conselheiros que estarão envolvidos no julgamento do tribunal.

“A tendência é de seja aprovado”, afirma uma das fontes. “Mas agora, com a repercussão que o caso ganhou, é difícil que seja sem restrições. Mais ainda é difícil prever a extensão dos remédios.”

Procurada, a Ultragaz reforçou, em nota, que a operação compartilhada “permitirá uma maior eficiência da companhia, contribuirá para a melhoria do nível de atendimento logístico aos clientes e a ampliação do acesso ao GLP para os brasileiros”.

A empresa ressaltou ainda que as estruturas societárias e de capital se mantém completamente separadas. E que a o processo segue o trâmite normal no Cade, com a análise pelos conselheiros do tribunal administrativo do órgão, como em processos de aprovação dessa natureza.

Em comunicado, a Supergasbras seguiu a mesma linha: “O contrato de consórcio (cooperação operacional) com a Ultragaz prevê o aprimoramento operacional das bases de engarrafamento, mantendo a independência societária administrativa e comercial das duas empresas”, observou.

A companhia acrescentou que um dos principais benefícios será ampliar o acesso à infraestrutura em áreas onde não possui bases próprias, aprimorando, assim, o atendimento à população. A Copagaz não se manifestou até o fechamento desta reportagem.