Nos últimos anos, o mercado se acostumou a assistir aos embates crescentes entre BTG Pactual e XP na arena dos escritórios de agentes autônomos. Mais recentemente, no entanto, essas batalhas se transferiram, literalmente, para outro campo: o futebol.

Em lados opostos, os dois players estão por trás de adversários de peso em uma peleja cada vez mais acirrada: a disputa pela criação da liga que irá reorganizar o futebol brasileiro a partir de 2025, data em que os clubes estarão livres para negociar um novo contrato de direitos de transmissão.

Com um mandato da Liga do Futebol Brasileiro (Libra), o BTG e a Codajás Sports Kapital atraíram uma proposta de R$ 4,75 bilhões do Mubadala Capital, braço do fundo soberano do governo de Abu Dhabi. A proposta envolve uma fatia de 20% da liga a ser criada, por um prazo de 50 anos.

Nos mesmos termos, mas com a promessa de um aporte de R$ 4,85 bilhões, a Liga Forte Futebol (LFF) é assessorada pela XP, o escritório Alvarez & Marsal e a Livemode. O investimento viria de um consórcio da gestora brasileira Life Capital Partners (LCP) e do fundo americano Serengeti Asset Management.

Diante da rivalidade crescente, os dois grupos têm buscado opções para vencerem esse certame. Nesta semana, o Mubadala apresentou uma nova proposta. A diferença é um cheque de R$ 2,4 bilhões por 12,5% nas receitas de um bloco comercial, e não de uma liga, para negociar as cotas de transmissão.

“Nós atendemos 95% dos pleitos e chegamos no limite do que podíamos fazer de concessões”, diz Sérgio Carneiro, diretor-executivo do Mubadala no Brasil, ao NeoFeed. “Não podemos ficar reféns. Há um ciclo de negociação para 2025 que precisa acontecer. A hora é agora e vamos seguir adiante.”

Em mais de um ano de negociação, que envolveu o bloco da LFF, o fundo flexibilizou questões como o aporte total atrelado a adesão dos 40 clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro. Nesse intervalo, aceitou pagar R$ 4 bilhões caso os 18 times que se alinharam à Libra aceitassem o acordo.

Agora, o Mubadala definiu que a criação do bloco comercial precisa do aval de apenas quatro clubes – Flamengo, Corinthians, Palmeiras e São Paulo. Mas se comprometeu a antecipar R$ 3 milhões para cada time, incluindo aqueles além do quarteto, na assinatura do contrato, prevista para o fim deste mês.

“O mundo ideal seria caminhar direto para a liga”, diz Bruno Amaral, sócio do BTG que lidera as ações do banco nesse processo. “Mas o formato do bloco comercial não exclui a criação da Libra. É um passo intermediário para que isso aconteça e vamos seguir gastando toda nossa energia nessa direção.”

Na visão de parte do mercado, a nova oferta estaria ligada a possíveis desfalques na escalação da Libra. Em 10 de junho, John Textor, empresário americano que assumiu o controle da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) do Botafogo, anunciou a saída do clube da liga. Mas pontou que não se juntaria à LFF.

“Eu me preocupo. Prometi trazer este clube de volta à estabilidade ao longo de um período de três anos. Já estou na metade desse tempo e não estou nem perto da sustentabilidade econômica. Quando vejo os prazos do pessoal da Libra, não posso ignorar isso”, afirmou Textor, ao portal GE.

Sua decisão ganhou um novo contexto com a informação do colunista Paulo Vinicius Coelho, do UOL, de que Cruzeiro e Vasco teriam decidido seguir o mesmo caminho, o que abriria as portas para um eventual terceiro bloco. A saída da dupla é, no entanto, negada pelos executivos à frente da Libra.

“Eles não nos comunicaram nada. Ao contrário, seguimos tendo interações”, ressalta Cabral. Em relação a Textor, Carneiro complementa: “Por ora, ele está trabalhando em seu plano B, sem estar preso à exclusividade. Assim que estivermos prontos para seguir, ele vai estar conosco.”

Em sua oferta mais recente, o grupo assessorado pelo BTG propõe pagar R$ 2,4 bilhões por 12,5% das receitas futuras de um bloco comercial para negociar direitos de TV

Entretanto, há quem discorde do otimismo demonstrado pela Libra na formalização desse novo passo e entenda que o grupo terá dificuldades para concretizar esse modelo intermediário.

“O Mubadala trabalhou muito, mas sempre visando a criação da liga. Eles subestimaram o desafio dos clubes se acertarem”, diz uma fonte. “Não esperavam que a LFF fosse ganhar corpo com outro investidor e nunca se mostraram flexíveis para compartilhar uma fatia relevante numa liga combinada.”

A princípio, 26 clubes integram a LFF, sendo nove da série A: Atlético-MG, Fluminense, Internacional, Athletico PR, América-MG, Goiás, Fortaleza, Cuiabá e Coritiba. Na Libra, por sua vez, o peso da primeira divisão é maior. São 11 times sem excluir a eventual dissidência de Botafogo, Cruzeiro e Vasco. E o pacote completo do grupo responde  por mais de 70% da audiência.

Paralelamente à sua oferta original, a LFF tem na mesa uma proposta de R$ 2,3 bilhões para a criação de um bloco comercial, em troca de 20% das receitas de mídia, também por 50 anos. Desse montante, a promessa seria de um pagamento antecipado de 40% para cada clube na assinatura do contrato.

Na noite de ontem, 14 de junho, a LFF comunicou em nota que está em “tratativas avançadas” para a assinatura do acordo, prevista para os “próximos dias”. E informou que a adesão é a condição para a XP oferecer aos times uma linha de antecipação dos recursos. Procurada, a XP não concedeu entrevista.

Em mais um contraponto dessa trama, uma fonte ouvida pelo NeoFeed ressalta que, além da reação à nova oferta da Libra, esse discurso teria outro pano de fundo: o próximo dia 6 de julho, quando chega ao fim a exclusividade do term sheet assinado pelo grupo encabeçado pela XP com os clubes da LFF.

“Eles estão sempre sinalizando uma antecipação que nunca vem. Alguns desses times já perceberam isso e indicaram que planejam migrar para a Libra”, afirma a fonte em questão. “Eles só estão aguardando para ficarem livres dessa amarra jurídica.”

Disputas e narrativas

Não são poucos os pontos que alimentam as disputas nos bastidores e as narrativas sobre esse imbróglio. A começar pelos investidores por trás dessas operações. Nesse âmbito, o Mubadala, que tem cerca de US$ 270 bilhões de ativos sob gestão, é mais conhecido no Brasil e no mundo.

Seu portfólio local inclui ativos como o Porto Sudeste, a Prumo Logística e a refinaria de Mataripe (BA), pela qual o grupo pagou US$ 1,8 bilhão à Petrobras, em 2021. Já no mundo dos esportes, entre outros projetos, um dos investimentos envolve a SX Global, grupo australiano que promove o FIM Supercross World Championship, de motociclismo.

Há poucas informações, por sua vez, a respeito da Serengeti, o que desperta a desconfiança de parte do mercado. Mesmo em uma pesquisa na internet, são poucos os dados disponíveis a respeito da operação, fundada em 2007, por Joseph LaNasa.

“É um fundo abutre, de compra de dívida e reestruturação, o que é muito diferente de organizar uma liga”, diz uma fonte ouvida pelo NeoFeed. “É um investidor obscuro, que tem um volume de ativos menor do que essa oportunidade. É um cheque sem fundo essa proposta deles. Ela é fictícia.”

Em contrapartida, também existem questionamentos sobre como a Libra está sendo estruturada. Especialmente no que diz respeito ao envolvimento de alguns personagens nessa composição.

“A Libra fez muitos acordos paralelos para fazer esse negócio acontecer”, afirma outra fonte. “O que tem feito muitos clubes resistirem à ideia de se associar é a visão de que eles estão formando quase que uma CBF 2, com figuras envolvidas com as práticas antigas do futebol.”

Da mesma forma, há quem aponte um protagonismo de dois atores – Athlético PR e Fluminense – como outra questão problemática na esfera da LFF.

“Eles centralizam as negociações e não são a favor da criação de uma liga, especialmente da Libra”, pontua outra fonte a par das tratativas. “Então, a agenda é sempre do contra e na base das demandas absurdas. O interesse é vender caro ou bloquear qualquer avanço.”

Mesmo em meio a esse clima bélico, a expectativa é de que há espaço para uma convergência e para que, superadas as discordâncias, esse debate intenso resulte na criação de uma liga. Mesmo que essa estrutura seja formalizada “aos 48 minutos do segundo tempo”.

“A liga vai sair e eu entendo que o modelo vai ser uma união das duas propostas”, observa uma das fontes. “No fim do dia, todos vão fazer esse movimento. Uma oferta não precisa prevalecer sobre a outra.”

Coadjuvantes?

Para Amir Somoggi, sócio-diretor da consultoria Sports Value, seja qual for o modelo adotado, a criação de uma liga é um caminho imprescindível para o futebol brasileiro. Entretanto, ele tem ressalvas em relação às duas propostas em curso. Em particular, sobre o valuation dessas ofertas.

“Com toda a bagunça de gestão, de calendário e a CBF atrapalhando, os 20 principais times faturaram R$ 7,5 bilhões em 2022”, afirma. “O que os clubes não estão percebendo é que eles estão entregando de bandeja, na baixa, um produto mal acabado que, minimamente organizado, vale o dobro.”

Somoggi ressalta que a situação crítica de boa parte dos clubes ajuda a explicar esse contexto e o fato de que, sem poder de barganha, eles estão sendo coadjuvantes nesse processo. “Os clubes são reféns do próprio amadorismo e estão hipotecando o futuro, como sempre fizeram”, diz.

Ele também critica a falta de visibilidade sobre os planos das duas partes para buscar novas receitas além das fontes tradicionais. “BTG e XP não estão preparados para isso, porque eles só estão preocupados em vender a liga para o investidor estrangeiro”, afirma.

Um estudo da Galapagos Capital e da Outfield ilustra um pouco desse panorama. Segundo a pesquisa, em 2022, o nível de endividamento dos times da Série A, somado ao dos quatro clubes que subiram para a primeira divisão, cresceu 8,9% em relação a 2021, para R$ 10 bilhões.

O nível de endividamento dos times da Série A cresceu 8,9% em 2022, para R$ 10 bilhões

Questionados, os representantes da Libra rebatem esses argumentos. Para eles, o fato de as negociações para a criação da liga se estenderem por mais de um ano são a maior prova de que os clubes estão tendo voz ativa nesse processo.

“Quanto ao valuation, se pensarmos no objeto desse acordo, que é o direito de transmissão, foram pouco R$ 2 bilhões em 2022”, diz Amaral. “O múltiplo dessa transação é mais de 11 vezes a receita. Está em linha com qualquer acordo de liga lá fora e é um múltiplo de startup do Vale do Silício.”

Em relação aos planos para turbinar as receitas, além de passos iniciais relacionados à qualidade e à padronização das transmissões, o olhar para a venda dos direitos no exterior é um dos planos no radar.

“O futebol está crescendo muito nos Estados Unidos e o fato de estarmos na mesma time zone nos favorece”, afirma Carneiro. “Ao mesmo tempo, podemos aproveitar sinergias e fazer parcerias com outras ligas para negociarmos em bloco em outros mercados.”

Hoje, segundo dados da Sports Value, o Campeonato Brasileiro responde por apenas 3% dos direitos mundiais de transmissão de futebol e 1% dos esportes como um todo. Para efeito de comparação, a Premier League, da Inglaterra, tem, respectivamente, fatias de 19,5% e 53%.

“Mas nós temos algo que nenhum outro país tem: quase 40 milhões de lares de aficionados por futebol, o que equivale à população da Inglaterra”, diz Carneiro. “Obviamente, o poder aquisitivo é diferente, mas isso, por si só, já deveria sustentar um campeonato com outro patamar de faturamento.”