No novo capítulo da disputa envolvendo empresas nacionais e as plataformas chinesas, um personagem aparece no meio dos dois lados com interesses ambíguos. Eis Josué Gomes da Silva, dono da Coteminas, que fechou um acordo de produção com a chinesa Shein e que, ao mesmo tempo, é o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Desde o último dia 30 de junho, quando o governo federal anunciou a isenção de impostos para produtos de até US$ 50,00 vindos do exterior, varejistas e industriais passaram a ver em Josué a causa de uma grande celeuma. A divulgação da portaria que passa a valer a partir de 1 de agosto caiu como uma bomba e os varejistas começaram a se movimentar logo em seguida.
No sábado, 3 de julho, eles se reuniram com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o secretário do ministério Bernard Appy. Em um encontro marcado pela insatisfação e surpresa por parte dos varejistas, o ministro teria dito que estava sofrendo pressão por parte do governo para que a população tenha acesso a produtos baratos e não adotar medidas impopulares.
No final do encontro, teria dito ainda que estava lutando sozinho e que Josué tem muita influência sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Vale lembrar que Josué é filho do ex-vice presidente de Lula, o falecido José Alencar, e foi chamado para ser ministro de Lula neste novo governo.
Dois empresários que participaram da conversa com Haddad e Appy confirmaram a mesma história ao NeoFeed. Procurado, o Ministério da Fazenda disse, por meio de sua assessoria de comunicação, que "não comentaria".
Uma conjunção de fatores tem levado os empresários e varejistas a mirar seus canhões contra Josué. Primeiro porque a Coteminas está endividada e encontrou na Shein, uma das mais beneficiadas pela isenção de importação, sua boia de salvação, assinando um acordo para produzir em suas fábricas aqui no Brasil. Segundo porque ele tem aberto as portas do Palácio do Planalto para Marcelo Claure, o chairman da Shein na América Latina.
“A Coteminas está com muitos problemas e os caras (Shein) colocaram dinheiro na companhia dele. Salvando a empresa dele e fazendo lobby político, ele está destruindo a indústria nacional. O impressionante é que ele é presidente da Fiesp”, diz o CEO de uma grande varejista ao NeoFeed. E acrescenta uma série de (in)felizes coincidências.
No dia 14 de junho, os varejistas se encontraram com o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin, o ministro Fernando Haddad e o ministro da Casa Civil Rui Costa. Durante a reunião, Haddad abriu dizendo que, se as empresas quisessem entrar no Brasil, investindo, pagando impostos, ótimo. E ressaltou que o contrabando ia acabar.
Os empresários saíram otimistas de que as regras passariam a valer para todos. No dia 29 de junho, Josué, ao lado de Claure e da governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), se encontraram com o presidente Lula no Palácio do Planalto. Terminada a reunião, Josué, Claure e Bezerra anunciaram para a imprensa que a Coteminas iria produzir para a Shein a partir da fábrica em Macaíba no estado potiguar.
No dia seguinte a essa reunião, em 30 de junho, o governo anunciou que isentaria o imposto de importação de produtos de até US$ 50,00. “As coisas parecem que vão melhorar e pioram. É muito complicado, é estranho o que está acontecendo”, diz um grande empresário ao NeoFeed. “Estamos vivendo o protecionismo às avessas. Destrói as empresas nacionais e protege as internacionais.”
Em seguida, segundo apurou o NeoFeed, aconteceu uma reunião entre membros do IDV (Instituto para o Desenvolvimento do Varejo) e a Fiesp, na qual Josué foi confrontado. Um dos presentes disparou. “Você tem seus interesses particulares, mas é presidente da Fiesp e vai acabar com a indústria nacional.” Josué disse que buscaria um consenso e teria sugerido 9% de imposto de importação. “Isso não tem cabimento, deveria ser, no mínimo, 40%”, diz outro empresário que não quis se identificar.
Procurada pelo NeoFeed para que Josué e a entidade se manifestassem, a Fiesp não retornou aos insistentes pedidos da reportagem. Muitos empresários não querem dar a cara a tapa para evitar uma retaliação do governo, mas alguns já estão se posicionando. “Não entendo como governo pode legalizar o contrabando”, disse João Pinheiro Nogueira Batista, CEO da Marisa, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo.
Trata-se, de fato, uma medida com efeitos devastadores para as empresas nacionais, sobretudo as pequenas. “Todos vão sofrer”, diz Jorge Gonçalves Filho, presidente do IDV. “O governo deveria permitir a isenção de impostos para as empresas nacionais em produtos de até R$ 250,00”, afirma. Assim, complementa, “seria uma competição em pé de igualdade”.
Com a medida de isentar as importações de até US$ 50,00 para as empresas que estiverem cadastradas no programa Remessa Conforme, o governo acabou adotando uma ação que vai impactar todas as indústrias.
Brinquedos, cigarros, equipamentos eletrônicos, bebidas, cosméticos e afins poderão inundar o mercado brasileiro sem imposto. “Eu conheço países protecionistas e também os que são liberais na economia. Nunca tinha ouvido falar em um país ‘desprotecionista’”, diz outro grande empresário brasileiro.
As grandes companhias podem mudar suas produções para outros países e, em último caso, produzir aqui, exportar para um dos países do Mercosul e trazer a mercadoria de volta ao Brasil sem pagar imposto. Ou seja, mais uma engenharia tributária. E, curiosamente, uma empresa como a Amazon, que faz tudo dentro da lei, recolhe os impostos de importação, poderá vender produtos de até US$ 50 isentos de impostos.
A estratégia de Haddad, que, todos os empresários ouvidos pela reportagem, dizem ser bem-intencionado, é atrair todas as plataformas de e-commerce para a plataforma Remessa Conforme, ter o acompanhamento das vendas delas e depois definir a alíquota do federal. Acontece que isso pode ser perigoso. Ao acostumar a população com um determinado preço, aí sim pode soar impopular taxar as importações.
“Antes, era isento de imposto de importação um presente que uma pessoa mandava para outra. Agora, estão permitindo o comércio sem imposto”, diz Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil. “O próprio varejo brasileiro vai buscar outros caminhos em outros países”, diz ele. O que o presidente da Fiesp – ou o parceiro da Shein – acha disso?