Quem visita os escritórios do supermercado online Shopper, em São Paulo, vai se surpreender com o mesmo padrão de mesa. Mas o que chama mais atenção é que quase todas têm uma etiqueta pendurada em um algum canto – até a gigantesca mesa do conselho, capaz de acomodar confortavelmente mais de 20 pessoas.
Engana-se quem pensa que a informação na etiqueta vai mostrar o fornecedor ou o material nobre de que é feito aquele item do mobiliário. Ela traz duas informações: o preço Shopper e o preço Loja. Em geral, o preço Shopper é até 50% menor. Essa diferença deve-se ao fato de que as bancadas são feitas por marceneiros contratados pela própria startup.
Essa atitude pode parecer um detalhe insignificante, mas faz parte da cultura da Shopper, que passou quase seis anos de sua vida com pouco capital e incorporou a austeridade à sua rotina. Só no ano passado, o dinheiro chegou abundantemente. Em duas captações, a startup levantou R$ 290 milhões – uma em março e outra em setembro – de investidores como GIC, fundo soberano de Cingapura, Minerva Foods e Quartz, do executivo da Renner José Galló.
“Fomos forjados com pouco capital. Agora que temos dinheiro em caixa não mudou nada”, diz Fábio Rodas, um dos fundadores da Shopper em conjunto com Bruna Vaz. O resultado é que a Shopper é uma das startups que está nadando contra a correnteza, em um momento em que a maré está baixando e muitas empresas capitalizadas por fundos de venture capital estão anunciando demissões em massa, como QuintoAndar, Loft, Facily, Kavak, Ebanx, VTEX, Mercado Bitcoin, Olist, e tantas outras.
Com 1.650 funcionários, a Shopper vai seguir contratando uma média de 100 novos funcionários por mês até o fim de 2022. O número de cidades atendidas por seu aplicativo de compras começou o ano em 80 cidades. Agora, já são 105. E até o fim de 2022 deverão ser 120. Todas elas localizadas no Estado de São Paulo. Mas, no próximo ano, a expectativa é expandir para outros Estados. “Olhamos para o Rio de Janeiro com bons olhos e tem outras cidades no Sul”, afirma Rodas. “O dilema é para onde e qual o melhor momento.”
A Shopper não é a única startup neste momento que parece ir no contrafluxo. A Omie, que desenvolve um software de gestão na nuvem; a CRM&Bonus, dona de uma plataforma de fidelidade e giftback; a Cobli, uma logtech que atende mais de 5 mil empresas; e a Insider, uma martech turca que tem o Brasil como um de seus principais mercados, estão com suas máquinas de contratações a todo vapor.
O que explica esse movimento contrário a grandes nomes do mercado de startups, muitos deles unicórnios ou com capital aberto na bolsa de valores? Em primeiro lugar, os exemplos citados acima conseguiram captar grandes somas de recursos no ano passado, antes da ressaca que abateu, primeiro, os mercados públicos e, logo em seguida, os privados, derrubando valutions de ativos tech ao redor do globo.
A Omie, por exemplo, captou R$ 580 milhões em setembro do ano passado. E, um mês depois, abasteceu o caixa com uma extensão de rodada com a chinesa Tencent, de valor não foi divulgado. A CRM&Bonus levantou R$ 280 milhões em outubro. A Cobli, R$ 175 milhões em julho. E a Insider, US$ 121 milhões, quando se tornou um unicórnio, no começo de 2022.
Não seria, no entanto, correto atribuir apenas ao fato de estarem com o caixa cheio a razão de seguirem contratando e manterem seus planos de expansão. “É uma composição de timing de captação e entre margem bruta e o caminho para lucratividade”, diz Marcelo Lombardo, CEO e fundador da Omie. “Se a startup tem margem bruta alta e pode manobrar para a lucratividade, não precisa desacelerar.” E acrescenta: “Tem startup que tem caixa, mas o ponto de equilíbrio está distante.”
Não é o caso da Omie, que diz ter uma margem bruta de 75% e acredita que sua taxa de crescimento pode levá-la para o equilíbrio financeiro até meados de 2023. “E ainda vamos ter folga de caixa”, diz Lombardo. Atualmente, a Omie conta com 100 mil clientes e tem adicionado entre 5 mil e 6 mil novos por mês. Para dar conta dessa demanda, a startup deve passar de 1,7 mil funcionários para 2,1 mil até o fim deste ano – o dado inclui também os recrutados pelos franqueados.
Além do caixa cheio, essas startups também buscaram crescer mantendo os unit economics saudáveis. Em outras palavras, apesar de serem deficitárias, os produtos e serviços que vendem dão lucro, quando se tira da conta o investimento que está sendo feito para crescer de forma acelerada, o que inclui M&As, pesquisas e desenvolvimento, marketing e expansão geográfica.
A Insider, que tem origem estrangeira e é dona de um software de automação e personalização de marketing, tem uma operação lucrativa no Brasil, que se tornou um de seus principais mercados. Por aqui, o plano é investir R$ 500 milhões nos próximos cinco anos. Só em 2022, o número de funcionários vai dobrar, passando de 40 para 80. “Sempre fomos muito pé no chão, pelo fato de não sermos uma startup do Vale do Silício, o que torna mais difícil captar”, diz Moritz Wolff, sócio da Insider.
Mas poucas empresas ilustram essa obsessão por unit economics saudáveis como a CRM&Bonus. Antes do aporte, que contou com um grupo de investidores que inclui Softbank, Volpe Capital, Riverwood Capital e Igah Ventures, a empresa distribuía dividendos.
Com o dinheiro dos fundos de venture capital, o fundador e CEO Alexandre Zolko se comprometeu a não distribuir os lucros por 24 meses. Mas manteve sua filosofia de não perder dinheiro. “Eu vou crescer o máximo que posso, mas quero ter um lucro de, no mínimo, R$ 1”, diz Zolko. “Estamos crescendo a companhia a cada seis meses sem queima de caixa.”
A companhia, que desenvolveu uma plataforma white label para o varejo criar programas de fidelidade e de giftback, já atua no Brasil, México, Portugal e está dando os primeiros passos nos Estados Unidos. Tem mais de 1,5 mil clientes, que inclui grandes empresas, como Vivara e Ambev, assim como pequenos restaurantes.
O plano de Zolko, agora, é investir pesado em marketing. Ao mesmo tempo negocia duas aquisições que devem ajudar a companhia a dobrar de tamanho – hoje são 100 funcionários. O ARR (Annual Recurring Revenue) deve também multiplicar-se por dois até o fim do ano e alcançar a cifra de R$ 100 milhões. O desafio, nas palavras de Zolko, é conseguir o grau de crescimento perfeito para maximizar o lucro. Em resumo, não vale crescer a qualquer custo.
Na Shopper, esse foi um dilema no começo da pandemia, quando as economias fecharam e a demanda pelo serviço de supermercados online explodiu a partir de março de 2020. Em uma semana, o número de funcionários passou de 150 para 300. “Batemos todos os recordes”, diz Rodas. “Mas lógico que, do ponto de vista operacional, deu uma bagunçada.”
A atitude de Rodas para lidar com essa situação, no entanto, surpreendeu. Ele resolveu fazer uma freada de arrumação e abrir uma fila de espera para aceitar novos clientes de forma organizada. Mesmo assim, a taxa de crescimento ficou entre 150% e 200%. E o ritmo se manteve em 2021. E deve se repetir esse ano. Hoje, o aplicativo conta com 600 mil usuários cadastrados. “Podíamos crescer muito no curto prazo, mas íamos perder clientes no longo prazo”, diz Rodas.
É a mesma estratégia da Cobli, logtech para frotas de veículos comerciais. “O cliente fica conosco por muito tempo”, diz Rodrigo Mourad, presidente da Cobli. E, à medida que o tempo passa, usa cada vez mais os serviços da startup. Por esse motivo, uma das lógicas da última captação foi desenvolver mais produtos, como câmeras e sensores para dar informações sobre a forma de condução dos motoristas. O orçamento de pesquisa e desenvolvimento, inclusive, foi reforçado e soma R$ 30 milhões
O número de funcionários da Cobli também não para de crescer. Atualmente, são 350 funcionários. E, no momento, há 35 vagas abertas, 10% do total. “Nos próximos 12 meses, vamos contratar centenas de funcionários”, afirma Mourad. “Vamos recrutar em todas as áreas, como tecnologia, marketing finanças, processos, customer success e suply chain.”
O novo cenário de venture capital, em que os investidores estão mais cautelosos na hora de investir e de que os valuation estão em queda, cria também oportunidades para todas as empresas que estão nadando contra a correnteza. “Quem está demitindo são as startups que foram pegas no contrapé do fundraising”, diz um investidor. “Elas estavam com o caixa apertado e contavam com uma nova rodada.”
Agora, uma nova rodada pode significar um valuation menor e uma diluição grande da participação dos fundadores. A solução é preservar caixa e cortar custos, o que, muitas vezes, significa também demitir para aumentar o runway – o tempo que um empreendedor consegue manter a operação sem precisar de mais recursos. “Mas, infelizmente, muitas startups vão ficar pelo caminho”, diz esse investidor. “E isso abre uma oportunidade de M&As.” Todas as empresas com quem o NeoFeed conversou estão atentas a essas oportunidades de fusões e aquisições.
Nadar contra a correnteza exige mais esforço e o tempo para se chegar ao destino é mais longo. Mas existe um velho chavão, repetido sempre quando há uma crise, de que enquanto alguns choram, outros vendem lenços. Por mais repetitivo que possa parecer, não deixou ainda de ser atual.