Quem diria que no ecossistema da inovação 4.0 surgiria uma nova Elizabeth Holmes? Como a fundadora da healthtech Theranos, condenada em novembro de 2022 a 11 anos de cadeia por fraude, a americana Charlie Javice foi uma jovem obstinada. Sonhava em mudar o mundo – e ganhar muito dinheiro com isso. Em 2016, aos 24 anos, imbuída da missão de democratizar o acesso ao ensino universitário, ela fundou a Frank. A startup propunha tornar o processo de solicitação de empréstimos estudantis mais rápido e fácil.

Mas, como aconteceu com Elizabeth, a mentira derrubou Charlie. Nos cinco primeiros anos, a Frank foi um sucesso. E, sua líder, considerada um prodígio.

O negócio fez brilhar os olhos de investidores e atraiu US$ 20,5 milhões em cheques de fundos de venture capital, mostra a plataforma Crunchbase. Entre seus apoiadores, estão o bilionário Marc Rowan e empresas como Aleph, Chegg e Reach Capital.

Em 2019, quando Charlie entrou para a lista Under 30, da revista Forbes, com os empreendedores com menos de 30 anos mais geniais do ano, Michael Eisenberg, sócio do fundo Aleph, era só elogios. “Nunca vi ninguém mais determinada em lidar com um problema aparentemente intratável”, disse ele. “Charlie lutou por isso com obstinação e graça.”

Como se veria mais tarde, com adulteração de dados também, tal qual Elizabeth Holmes, no início dos anos 2000. Em 2021, o J.P. Morgan pagou US$ 175 milhões pela Frank. No anúncio da compra, o banco classificou a edtech como a “plataforma de planejamento financeiro universitário de crescimento mais rápido do mercado”, usada por cerca de 5 milhões de estudantes, em 6 mil universidades.

Na semana passada, conforme revelado pelo jornal americano The Wall Street Journal, Charlie mentiu sobre a escala de seus negócios, na fase de due dilligence.

No processo aberto pelo J.P. Morgan, no final do ano passado, em um tribunal de Delaware, Charlie e Olivier Amar, chefe de growth da edtech, forneceram uma lista de 4,265 milhões de clientes. Mas apenas 300 mil eram verdadeiros.

Quando os investidores do J.P. Morgan pediram as informações, Charlie, em um primeiro momento, negou. Dizia-se impedida de apresentar os nomes por “questões de privacidade”. Frente à insistência da instituição financeira, ela forneceu os dados falsos.

Na denúncia, o banco diz que Amar pagou US$ 18 mil para um professor de data science, de Nova York, criar os perfis falsos e outros US$ 105 mil pelo mailing da empresa ASL Marketing. Em uma das mensagens para o tal cientista de dados, Charlie teria perguntado: “Os e-mails falsos parecerão reais com uma verificação ocular ou é melhor usar uma identificação exclusiva?”.

Não importa qual tenha sido o artifício usado, o fato é que não deu certo. Ao assumir a Frank, o J.P. Morgan criou uma campanha de marketing e enviou mensagens eletrônicas para a base da edtech. Cerca de 70% dos e-mails, porém, voltaram. Não conseguiram ser entregues com sucesso porque eram fajutos. A fraude estava revelada – para constrangimento das lideranças do banco.

Na quinta-feira, 12 de janeiro, o banco fechou o site da edtech. Quem o acessava, encontrava a mensagem: “Para o aplicativo gratuito para auxílio federal ao estudante (FSAFSA, na sigla em inglês), visite StudentAid.gov”.

Em 2017, aliás, o Departamento de Educação dos Estados Unidos obrigou Charlie a mudar o nome de seu site, sob a acusação de que a Frank poderia confundir os alunos, dando a impressão de que a empresa estava filiada ao governo federal.

Ao processo do J.P. Morgan, Charlie contra-atacou com uma ação na Justiça, na qual acusa a instituição financeira de ter “fabricado” motivos para demiti-la. Com a compra, ela e Amar passaram a integrar o quadro de funcionários do banco.

Negócio de sangue

Se a fraude de Charlie foi descoberta rapidamente, o mesmo não aconteceu com Elizabeth Holmes. A farsa da fundadora da Theranos durou mais de uma década. Criada em 2003, quando, aos 19 anos, Elizabeth abandonou o curso de química na Universidade Stanford, a empresa anunciava ser capaz de realizar cerca 200 tipos de exames diferentes com apenas uma gota de sangue.

O valuation da Theranos chegou a US$ 10 bilhões.

Entre os investidores de Elizabeth Holmes estavam o ex-secretário de Estado Henry Kissinger, o ex-secretário de Defesa James Mattis, o ex-secretário do Trabalho George Schultz e o magnata Rupert Murdoch. Em 2015, de novo, graças ao The Wall Street Journal, Elizabeth foi desmascarada.

A tão inovadora tecnologia da Theranos nunca havia saído do papel. Os testes realizados pela empresa eram feitos em equipamentos tradicionais, adulterados pelos técnicos da healthtech. Tem mais: como é necessário mais do que uma gota de sangue para qualquer exame disponível hoje em dia, a Theranos costumava diluir o material coletado. As consequências foram desastrosas, colocando em risco a vida de milhões de pacientes.

Em 2009, ao comentar como havia sido dura sua trajetória ao posto de uma das mulheres mais influentes e revolucionárias do mundo dos negócios, Elizabeth não titubeou: “A pior coisa no mundo é perceber que alguém não está acreditando no que vocês diz”, disse, sem ironia, a fundadora da Theranos.

A cara de pau é a mesma com a qual Charlie comemorou seu primeiro dia de trabalho no J.P. Morgan, em 2021. “Hoje é meu primeiro dia como empregada de outra pessoa”, anunciou, em entrevista à CNBC. “Me belisque, isso realmente aconteceu?”, completou, orgulhosa. O beliscão veio, sim, e bastante doído, sob a forma de um processo na Justiça.