Poucas empresas foram de céu ao inferno como a Theranos, fundada por Elizabeth Holmes em 2003, aos 19 anos de idade. A proposta da startup era sedutora: revolucionar o mundo dos laboratórios de exames clínicos com um equipamento portátil capaz de realizar dezenas de exames, como o de câncer e o de diabetes, com uma gota de sangue.

A ideia atraiu a família Walton, dona do Walmart, e o magnata da mídia Rupert Murdoch, que, junto com outros investidores do Vale do Silício, despejaram US$ 1,4 bilhão na startup e a avaliaram em US$ 9 bilhões em 2014. Holmes ganhou capas das principais revistas de negócios americanas e chegou até a ser comparada com Steve Jobs (1954-2011), o genial cofundador da Apple.

Mas esse conto de fadas do empreendedorismo do Vale do Silício se transformou em um pesadelo. Depois de denúncias de que a tecnologia não funcionava e de que Holmes enganava investidores e consumidores, a empresa enfrentou uma série de processos, os parceiros cortaram relação comerciais e os reguladores dos EUA proibiram, em 2016, a companhia de operar o seu serviço de exames de sangue por dois anos. Em 2018, a Theranos, oficialmente, faliu.

Agora, essa história volta à tona em um julgamento que começou nesta semana nos Estados Unidos e que tem, no banco dos réus, exatamente Elizabeth Holmes. A questão central para o júri: a empreendedora apenas fracassou ou fraudou investidores e consumidores com a sua startup?

Esse é o debate que está acontecendo em um tribunal em San José, a "capital" do Vale do Silício, entre os advogados de defesa de Holmes e os promotores que a acusam de fraude para enganar pacientes e investidores.

“Fracasso não é crime”, disse o advogado Lance Wade, do escritório Williams & Connolly, que defende Holmes, no começo do julgamento, que deve demorar três meses. Wade defendeu também que a empreendedora dedicou 15 anos na melhoria dos testes e nunca vendeu uma única ação da empresa que controlava, uma evidência de seu compromisso com o projeto.

Os promotores têm uma visão diferente. “Este é um caso de fraude, sobre mentir e trapacear para ganhar dinheiro”, disse Robert Leach, um procurador-adjunto dos Estados Unidos que está à frente do caso.

Leach alega ainda que a Theranos levantou recursos de investidores com base em uma série de declarações falsas, incluindo a de que a tecnologia havia sido aprovada por grandes companhias farmacêuticas e que estava sendo adotada por militares americanos no campo de batalha para salvar a vida de soldados.

“Este é um caso de fraude, sobre mentir e trapacear para ganhar dinheiro”, disse Robert Leach, um procurador-adjunto dos Estados Unidos que está à frente do caso

No mundo dos negócios, poucos lugares entendem tão bem a questão do fracasso como o Vale do Silício, berço das principais empresas inovadoras do mundo. Lá, nasceu a Intel, que revolucionou os processadores; a Apple, que criou os primeiros computadores pessoais; e o Google e Facebook, expoentes da geração de internet.

Nenhuma dessas empresas teria conseguido o sucesso sem as falhas de tantos outros empreendedores. Fracassar faz parte do jogo da inovação. E, nesse sentido, com o perdão da repetição, errar não tem nada de errado. Ao contrário: é valorizado como um processo de aprendizado das companhias do Vale do Silício.

Mas Elizabeth Holmes apenas fracassou como defendem os seus advogados? Reportagens publicadas pelo jornal econômico The Wall Street Journal (WSJ), entre os anos de 2015 e 2016, mostram que o que aconteceu na startup parece ter sido além, bem além, de uma ideia que naufragou.

Os artigos escritos pelo jornalista John Carreyrou expuseram como a tecnologia da Theranos não funcionou, como a startup tentou encobrir falhas e como a vida de pacientes foi afetada e sua saúde ameaçada.

Em 2019, o documentário “A Inventora: À Busca de Sangue no Vale do Silício”, da HBO, trouxe mais detalhes dessa história e mostrou como Holmes conseguiu enganar investidores, clientes e consumidores com uma estratégia de atrair para seu lado nomes que o mercado confiava.

Dois ex-secretários de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger e George Shultz, foram conselheiros da Theranos

Dois ex-secretários de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger e George Shultz, foram conselheiros da Theranos. David Boies, que defendeu democrata Al Gore no caso da eleição presidencial de 2000, foi também contratado pela empresa.

Todos esses nomes davam credibilidade à companhia, enquanto a empreendedora lutava para fazer o aparelho chamado Edison (em homenagem ao inventor Thomas Alva Edison) funcionar, o que nunca aconteceu: ele esquentava, explodia e bagunçava as amostras de sangue sem nenhuma explicação.

No fim, os exames, que já eram feitos comercialmente em lojas da rede de farmácia Walgreens, tinham de ser refeitos pelos métodos tradicionais e, muitas vezes, os resultados eram errados, conforme a denúncia publicada pelo WSJ, na época.

Dito dessa forma, parece que Holmes lutou para fazer o equipamento funcionar e, ao não conseguir, apenas fracassou como muitos empreendedores ao redor do mundo que abraçam ideias inovadoras. Depoimentos de ex-funcionários, no entanto, contam uma história diferente.

O aparelho Edison, da Theranos: parecia revolucionário, mas só deu problema

Entre eles, está Tyler Shultz, neto de George Schultz, que, após ser identificado pela Theranos como a fonte das informações para as matérias do WSJ, passou a ser processado e ameaçado pelo empresa.

Shultz relatou todos os problemas a Holmes, que nunca teria tomado nenhuma atitude. Ao contrário, seguiu captando recursos com investidores ao mesmo tempo que o seu laboratório portátil era incapaz de soltar resultados certos.

O desafio dos promotores, para conseguir uma condenação de Holmes, que pode chegar até 20 anos, é convencer o júri de que a empreendedora teve a intenção de cometer fraude e não apenas que a empresa teve problemas para cumprir suas promessas.

Até agora, pouco se ouviu da versão de Holmes, que não deu entrevistas para o documentário da HBO e nem para o livro “Bad Blood”, de Carreyrou. Não se sabe ainda se ela falará no tribunal. Hoje, com 37 anos anos, ela se declarou inocente de dez acusações de fraude eletrônica e de duas de conspiração para cometer fraude eletrônica.

No Vale do Silício, há um ditado que diz “fake it ‘till you make it” – algo como “finja até dar certo.” Muitas ideias que pareciam malucas saíram do papel pela obstinação de um empreendedor, que errou, errou e errou até conseguir acertar.

No caso de Elizabeth Holmes, sabe-se que sua ideia não deu certo. Se foi um fracasso ou uma fraude, o júri americano vai dar seu veredicto nos próximos meses.