No fim de março, Fernando Domingues, cofundador e presidente do conselho da Conexa Saúde, foi tomar um café com Allan Paioti, na época diretor-executivo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Durante a conversa, Domingues disse que estava investindo na criação de uma plataforma focada em cannabis medicinal.
“Aquilo fez meu estômago mexer, percebi que era algo diferente, que eu precisava participar”, diz, ao NeoFeed, Paiotti, que pediu para entrar no negócio e foi estudar o mercado a fundo.
Agora, junto de Domingues, e outros investidores de peso como Rapha Avellar, Ricardo Dias e Gerard de Roure, da Adventures; Thiago Maluf, da Igah Ventures, e os médicos Abdalla Skaff e Gustavo Nobre, está lançando oficialmente a Cannect.
A plataforma, que nos últimos três meses vinha funcionando de forma experimental, visa resolver algumas dores dos usuários e dos médicos. “Somos um marketplace inclusivo. Já nascemos com 200 produtos disponíveis de um portfólio que mapeamos no Brasil de cerca de 350 produtos”, diz Paiotti, que deixou o comando do Oswaldo Cruz em abril e se tornou o CEO da startup.
A ideia é que qualquer remédio de cannabis medicinal prescrito por um médico seja encontrado na plataforma que começa com um site e depois ganhará um app. “Temos uma cabeça de healthtech para trabalhar a relação entre o paciente, o médico e o fornecedor”, afirma Paiotti. Isso, diz ele, é traduzido pelos serviços embarcados.
Se o paciente não tiver uma prescrição para comprar o remédio, a Cannect dispõe do serviço de teleconsulta fornecido pela Conexa Saúde. Dependendo do caso, o médico gera uma prescrição que vai para a plataforma e a startup cuida de toda a jornada. “Pegamos a prescrição, aprovamos junto à Anvisa, fazemos a intermediação de compra e entregamos na casa do cliente”, diz o CEO da Cannect.
O complicado trâmite é um dos maiores entraves para a popularização dos remédios a base de cannabis medicinal. Paiotti conta que uma das grandes reclamações dos médicos é que, ao prescrever o uso da cannabis medicinal, “começa a dor de cabeça deles”.
Isso acontece porque o paciente não encontra o produto, ou porque é caro e ele não tem opção, ou porque é burocrático e tem que aprovar na Anvisa. Um medicamento demora, em média, 25 dias para chegar na casa do cliente. A Anvisa pede até 10 dias úteis para aprovar a prescrição do paciente.
A Cannect, dizem seus fundadores, está fazendo um trabalho de curadoria dos produtos disponíveis na plataforma. Mas os sellers não podem vender diretamente. Tudo passa pela plataforma, que faz o meio de campo e ganha um percentual sobre as vendas.
“No futuro, em uma segunda etapa, a Cannect pretende criar assinaturas”, diz Fernando Domingues, o idealizador da plataforma e chaiman da startup. Nesse modelo, o paciente teria uma consulta mensal e a entrega do medicamento.
Os usuários desse tipo de remédio não são pacientes com um problema pontual, eles têm, em sua maioria, doenças crônicas e precisam usar o medicamento por um longo período. “Não é um negócio fitoterápico, paz e amor, alternativo. É medicina, tem contraindicação, tem efeitos de combinação com outros medicamentos. Tem rigor médico”, diz Paiotti.
Há diversos estudos que mostram que a cannabis medicinal, com seus extratos de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC), tem aplicações consistentes em saúde mental, em dores crônicas, em neurologia, neuropediatria e saúde do esporte. Vale lembrar que durante os Jogos Olímpicos de Tóquio o uso do canabidiol foi liberado para os atletas.
Além do foco no cliente final, no B2C, a Cannect também está em conversas com clínicas, laboratórios e hospitais para vender diretamente a eles – em quantidades maiores. Mais: outra linha de negócios que a companhia pretende avançar é em alimentos e suplementos, roupas e até medicamentos para pets.
Os empreendedores estão de olho em uma indústria gigantesca. Só no ano passado, estima-se que a cannabis legalizada movimentou cerca de US$ 20 bilhões nos Estados Unidos – metade medicinal e a outra metade para uso recreativo.
Estudos apontam que, em 2024, o mercado mundial deva girar US$ 104 bilhões
Estudos apontam que, em 2024, o mercado mundial deva girar US$ 104 bilhões. “Sendo muito conservador, o mercado brasileiro tem potencial de movimentar 10% do que é movimentado nos Estados Unidos”, diz, ao NeoFeed, Fernando Domingues, o chairman da startup.
De acordo com Paiotti, olhando as curvas de crescimento nos EUA e no Canadá, o Brasil pode ter 30 milhões de usuários de cannabis medicinal. O Relatório Impacto Econômico da Cannabis, produzido pela Kayamind, aponta para 7 milhões de usuários no Brasil em quatro anos.
Mas ainda há um longo caminho para que isso aconteça e a cannabis medicinal se torne popular como rapidamente se tornou nos Estados Unidos e em outros 50 países. No Brasil, só 0,2% dos médicos prescrevem medicamentos à base de cannabis medicinal.
Desbravar um mercado ainda incipiente não é novidade para Domingues. Isso porque ele entrou no segmento de telemedicina quando poucos falavam sobre o assunto e atualmente a Conexa Saúde, cofundada por ele, é a maior empresa do setor, com investidores do porte de General Atlantic.
Para tornar a cannabis medicinal mais usual, a Cannect vai fazer um amplo trabalho de conscientização na comunidade médica. “Montamos um corpo médico muito forte com a seguinte tese: só vamos promover o uso da cannabis baseado em conhecimento científico e evidência”, diz Paiotti.
A empresa montou um corpo médico comandado pelo Chief Medical Officer (CMO), Rafael Pessoa, e especialistas nas áreas de dor, oncologia paliativo, neurologia e saúde do esporte.
Diante disso, está compilando todo o material científico disponível no mundo, sistematizando isso, criando uma análise prática das evidências, gerando protocolos de utilização da cannabis e também desenvolvendo um programa de treinamento junto aos médicos.
Luta política
De acordo com Paiotti, essa é a janela perfeita para entrar no mercado. “Entre 2021 e 2023, esse negócio vai ser impulsionado pela discussão sobre a cannabis medicinal”, diz ele. As conversas têm acontecido, sobretudo, no Congresso.
Há dois anos a discussão foi iniciada e deu origem ao Projeto de Lei (PL) 399/15, de autoria do deputado Fábio Mitidieri (PSD-CE), que regulamenta o plantio da cannabis sativa no Brasil. “O País pode importar e produzir medicamentos, mas não pode plantar”, diz, ao NeoFeed, o deputado Luciano Ducci (PSB-PR), o relator do PL.
Ex-prefeito de Curitiba, médico de formação, Ducci afirma que o impacto da plantação controlada seria brutal para os pacientes. “Isso faria com que os medicamentos custassem até um terço do que custam atualmente”, afirma.
Além disso, estimularia as pesquisas, que hoje são quase nulas no País, e abriria espaço para toda uma indústria que vai da farmacêutica, passando pela têxtil, cosmética e celulose. “É uma indústria em franco desenvolvimento e estamos perdendo tempo”, afirma.
Em junho, o PL foi votado e aprovado em uma comissão na Câmara dos Deputados. A votação foi apertada. Foram 17 votos a favor e outros 17 contra. Ducci, que é o relator, deu seu voto de Minerva e, no final, ficou em 18 a 17.
Acontece que a bancada governista, que é contra o PL, entrou com um recurso para que a discussão vá a plenário e travou a pauta. Agora, depende do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Se o recurso for aprovado, os deputados terão de votar no plenário. Se for rejeitado, vai direto ao Senado. Mas, além do jogo político, Ducci diz que ainda luta contra uma grande máquina de fake news.
“São notícias mentirosas de que isso vai liberar a maconha no Brasil, que seria um caos para as crianças e para as famílias brasileiras. Isso é coisa de um grupo ideológico”, afirma.
Em conversa com apoiadores no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro disse que, se aprovado no Congresso, vetará e complementou dizendo que “a esquerda sempre pega uma oportunidade para querer liberar as drogas”.
O presidente também chegou a dizer em outra ocasião que “vetaria o projeto de lei, já que a proposta, segundo ele, é uma ‘porcaria’ e que o seu debate é ‘ridículo’. Israel, país frequentemente elogiado por Bolsonaro, é um dos mais avançados em cannabis medicinal.
Milhares de famílias como a de Anny Fischer, criança retratada no documentário “Ilegal”, definitivamente, não acham a discussão ridícula. Anny sofre com uma doença rara chamada CDKL5, que lhe proporcionava cerca de 80 convulsões por semana.
Antes do uso medicinal ser aprovado pela Anvisa, seus pais passaram a importar canabidiol ilegalmente para poder tratar da filha. As convulsões, que eram diárias, passaram a ser esporádicas. A família buscou autorização na Justiça e se tornou símbolo da luta pela aprovação da cannabis medicinal no País.