A matéria-prima de Ziraldo para criar sua vasta obra em todas as áreas das artes gráficas, do humor, do teatro e da literatura infantil estava dentro de casa. Era a sua família e sua cidade natal, Caratinga, no interior de Minas Gerais, que ele tornou famosa para o mundo.
Lá, passou apenas 18 de seus 91 anos de vida, pois se mudou para o Rio de Janeiro em 1950, para se consagrar nas páginas da lendária revista O Cruzeiro, que vendia 500 mil exemplares por semana. Mas a pequena localidade jamais saiu dele, ficou impregnada em forma de nostalgia e saudade, com suas lendas, personagens e até culinária.
Ziraldo foi encontrado morto no sábado, 6 de abril, em seu apartamento no bairro da Lagoa, zona Sul do Rio de Janeiro, após seis anos com uma saúde debilitada por um AVC. Ele jamais deixou de ser o menino do interior cujas memórias renderam a obra-prima O Menino Maluquinho e outros livros sobre vários membros da família e até sua professora, maluquinha, maluquinha, claro.
Nas mais de 180 obras que escreveu para crianças, ele falou de seus pais, dos avós, da perda da esposa, dos netos com delicadeza e sensibilidade - Nina falou sobre o avô para o NeoFeed. Escreveu tudo com o coração, com a paixão e a distância física de quem ama os seus e sofre com as perdas que a vida traz. E os leitores compreenderam essa intensidade de sentimentos e o consagraram como vendedor de milhões de exemplares.
Em 2009, na entrevista que fiz com ele para a revista Audi, o apressado Ziraldo – estava sempre metido em mil projetos – foi às lágrimas pelo inusitado do tema: o que lembrava das comidas que aprendeu a amar na infância e que faziam parte por toda a vida de suas receitas preferidas.
Não citou nada de diferente do que se espera de quem ama cozinha mineira do interior – feijão tropeiro com couve-flor, pequi, torresmo, carne de porco, ambrosia, pão de queijo etc. Mas fez uma pausa para dizer, emocionado, que a melhor comida do mundo era feita por sua avó, cuja lembrança trazia a ele aquele momento enorme saudade.
Para Ziraldo, não eram as receitas em si que gostava. Havia ali, na cozinha de sua avó (e de sua mãe), um tempero que não tinha em lugar nenhum do mundo: o carinho, o capricho que vinha daquelas mãos tão amorosas, que buscavam o ponto certo para encontrar e ele e seus seis irmãos saciados por ingredientes que não precisavam de nada de especial para parecer a melhor coisa a se comer.
Sua sensibilidade para perceber algo tão íntimo e familiar e que lhe deixou memórias tão sentimentais revelava bastante do artista que fazia pose de durão, mas que se expressava com um humanismo raro, inquestionável por quem quer que fosse.
Assim como amava a comida caseira da mãe e da avó, Ziraldo era um apaixonado por um Brasil que deveria saber conviver com suas origens nativas, naturais, ambientais e culturais.
Adotou o índio e o negro como símbolos de uma luta necessária, cobriu ambos de um verde amarelo outrora representantes de uma brasilidade cuja conotação tinha a ver com as minorias que ele passou a defender com tantos personagens.
Nesse contexto, conviver com as diferenças era algo tão natural e necessário como brincadeira de criança. Por isso, suas turminhas eram tão coloridas, principalmente na pele, lideradas pelo Saci Pererê, um pretinho à frente de seu tempo desde a virada para a década de 1960.
E foi com essa simplicidade que Ziraldo construiu uma das mais brilhantes carreiras na imprensa brasileira em todos os tempos e moldou a identidade gráfica e visual do Brasil das décadas de 1950 a 2000.
Se não aparecia como ilustrador de matérias e reportagens ou em cartuns políticos que tanto marcou sua militância no Pasquim, na Playboy e em outras publicações, fazia-se presente em anúncios de publicidade, cartazes de feiras como a da Providência, no Rio, evento que ilustrou por décadas. Também aparecia nos pôsteres de cinema e nas capas de livros de ficção e humor de grandes escritores nas livrarias – e não apenas nos seus.
Tudo isso certamente não ficará no passado. Mesmo que isso aconteça, Ziraldo permanecerá no imaginário de gerações de crianças que continuarão a nascer e a aprender a ler ou desenvolver a leitura com seus livros maluquinhos em que a inteligência é celebrada com imaginação e bom gosto.
Desde aquelas na mais tenra idade que brincam de colorir com seus livretos aos maiores que se alfabetizam com a turma do Menino Maluquinho. Não importará se impresso ou por meio de outras mídias, o poder de encantamento de sua escrita e desenhos resistirá por muito tempo.
Arte como atividade intelectual
Poucas pessoas conviveram tão próximas a Ziraldo como o designer Ricardo Leite. Procurado para falar do amigo que sempre visitava nos últimos anos, ele diz: “o que posso contar por experiência própria, e que poucos sabem, é que ele é um educador de uma generosidade, um carinho e uma paciência sem fim. Com muita frequência, jovens artistas o procuravam em busca de orientação. Ele os recebia com o afeto e a firmeza de um pai. Comentava os desenhos com sinceridade”.
Depois, abraçava-os afetuosamente, recomendava que lessem tudo o que estivesse ao alcance e dizia: “Arte é uma atividade intelectual”. Foi o que disse a Leite quando ele tinha 13 anos completos e foi procurá-lo no Pasquim para lhe mostrar seus cartuns: “Nunca me esqueci desse conselho”, diz ele.
O destino, aliás, por diversas vezes colocou os dois lado a lado nas pranchetas. O discípulo, que se consagraria como autor de milhares de capas de discos, concebeu graficamente para Ziraldo em 1999 a revista de humor Bundas, na qual foi editor de arte.
Essa orientação de Ziraldo da arte como atividade intelectual é reveladora da vasta erudição que havia na base de tudo que ele criava. Cada cartum seu tinha uma teoria, um conceito, uma ideia. Com essa astúcia, aliás, deixava seus críticos e desafetos – leia-se, forças de repressão da ditadura – de cuca fundida, como se dizia na época.
A mensagem de humor estava lá, mas nem sempre fazia rir e chamava o leitor à reflexão. Ziraldo quase sempre queria dizer algo a mais nas entrelinhas. Ou não. De instintivo não tinha nada, portanto.
Seu gibi A Turma do Pererê, onde ele reinventou um dos ícones do folclore brasileiro a partir de 1960 e era voltado para as crianças, foi uma das primeiras publicações proibidas pela ditadura militar, um mês depois que o regime começou, em maio de 1964. Os golpistas de plantão viam nele um subversivo que camuflava mensagens políticas e, com isso, levava o comunismo às criancinhas, o que era uma grande bobagem.
Tudo que Ziraldo fazia nas páginas do jornal Pasquim, que ajudou a fundar em junho de 1969, era inteligente, desafiava a compreensão da censura. Até que resolveram prendê-lo em 1969 e, depois, em mais duas oportunidades em 1971. Na maioria das vezes, porém, no que fazia havia o riso escancarado, explícito, mas jamais sem um quê de pensante. E era assim que ele se divertia também, ao tirar sarro do policiamento ideológico da censura.
Tipologia própria
Se não bastasse tudo isso, fez algo genial que pouca gente se dá conta: criou uma tipologia tão própria que basta ver uma letra “A” com um quadrado no meio – e não um triângulo, como de costume – para que qualquer um que tenha lido um único livro seu mate a charada: essa é uma letra desenhada por Ziraldo. Como foi possível que a troca de duas figuras geométricas dentro do alfabeto conseguisse marcar tanto as artes gráficas, a publicidade e a produção visual de livros?
Pode parecer clichê, mas o silêncio do Ziraldo falador e com posições firmes manterá aberto um vazio imenso dentre as vozes conscientes que fizeram a diferença no último meio século.
O artista fez parte de uma geração que praticamente desaparece com ele, depois que quase todos os companheiros foram embora (à exceção de Jaguar), que formaram a geração do Pasquim, a do humor de militância, de resistência, de defesa incondicional das liberdades.
Ziraldo se junta a Millôr Fernandes, Henfil, Ivan Lessa, Fortuna e tanto outros que a história do País tem uma dívida não paga, de reconhecimento por, literalmente, arriscarem suas vidas contra a opressão militar.
O filho de dona Zizinha, no entanto, abriu outras fronteiras após o início da redemocratização e percebeu que dialogar com as crianças era a melhor forma de blindar o presente e o futuro contra o fascismo e o autoritarismo.
Como qualquer cartunista, ele via o mundo como um menino sonhador que queria mudar as coisas com alguma pressa e desespero. Mas que apenas se disfarçava de maluquinho, pois a vida tinha de ter alguma graça.