“Os senhores veem à nossa volta essas abominações da loucura, da insolência, da inépcia e da degeneração. O que os olhos percebem, nos causa, a nós todos, choque e repulsa.”
Assim, Adolf Ziegler, presidente da Câmara do Terceiro Reich de Artes Plásticas, declarou aberta, em 19 de julho de 1937, em Munique, a exposição Arte Degenerada — Entartete Kunst, em alemão.
As “abominações” eram 650 obras, confiscadas de 32 museus alemães. Eram “abominações” porque eram modernistas — e seus criadores, livres. E porque fugiam ao padrão estético nazista, caracterizado pela valorização doentia da perfeição, da ordem e do equilíbrio.
Entre os “degenerados” estavam Pablo Picasso, Marc Chagall, Wassily Kandinsky, Van Gogh, Paul Klee, Lasar Segall, Max Ernst, Otto Dix, Henri Matisse e Lovis Corinth, entre outros.
As obras de artistas já consagrados à época, como Picasso, Chagall e Kandinsky, foram vendidas pelos nazistas, em leilões privados na Suíça. As outras seriam incineradas.
Em 13 de janeiro de 1938, Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler, escreveu em seu diário: “Nenhum quadro será poupado”.
Oitenta e cinco anos depois, descobriu-se que uma daquelas “abominações” fora, sim, poupada — a tela Viúva (Witwe), do lituano, de origem judaica, Lasar Segall (1889-1957).
Em 2022, o marchand paulista Paulo Kuczynski foi avisado por um amigo francês, também marchand: em meio ao espólio de um artista obscuro, havia uma pintura muito parecida com o quadro de Segall. As únicas referências da obra eram fotografias em branco e preto, em catálogos antigos.
Kuczynski foi até Paris, comprou o quadro e o trouxe para o Brasil. O valor pago, ele prefere não revelar. “Nada é mais importante do que a beleza da história de como o quadro sobreviveu à condenação de ser destruído, no atentado em massa à cultura cometido pelos nazistas”, diz, em conversa com o NeoFeed.
“Quem salvou a obra (talvez um oficial nazista?) tinha sensibilidade ou algum conhecimento de arte porque não a salvou por seu valor monetário, mas por seu valor intrínseco”, avalia o marchand.
Viúva foi muito bem conservada, as cores se mantêm vibrantes, sem nunca ter sido restaurada. A autenticidade da tela foi confirmada pela equipe técnica do Museu Lasar Segall, centro de referência para o estudo da obra do pintor.
De volta à luz
“Viúva é uma testemunha da história, uma obra sobrevivente, profunda e intrigante, reencontrada tantos anos depois de seu desaparecimento”, avalia Pierina Camargo, museóloga e pesquisadora da instituição paulistana, há cerca de 40 anos.
Agora, o quadro volta a ser exposto. De 19 de maio a 11 de agosto, a tela está no centro da mostra Witwe, uma pintura reencontrada, do Museu Lasar Segall, junto com gravuras produzidas pelo artista na mesma época.
De 1920, a tela é do auge da fase expressionista de Segall. Foi pintada em Dresden, na Alemanha, para onde o artista se mudara, em 1910, aos 21 anos, para estudar na Academia de Belas Artes.
“O expressionismo foi um movimento cultural de vanguarda que cresceu em tempos sórdidos na Alemanha pré-nazista”, escreve a artista plástica Mazé Leite, no artigo Verdade, fraternidade e arte.
E ela prossegue: “Suas imagens deformadas eram uma expressão da realidade dura que atingia física e subjetivamente o ser humano (...) Deu primazia à expressão dos sentimentos dos artistas, muito mais do que à descrição objetiva da realidade, como protesto mais profundo da alma dos artistas contra uma sociedade que se arruinava. Não havia como idealizar a realidade pois a fome, a doença, o desemprego e o abandono dominavam a vida do povo”.
Apesar do horror, a cultura estava em ebulição. Alguns artistas, entre eles, Segall, criaram o movimento Secessão de Dresden — Grupo 1919. Dedicados a denunciar os problemas sociais, eles propunham uma mudança radical dos valores da sociedade.
Viúva era uma das 15 pinturas, 30 desenhos e 35 gravuras da primeira grande mostra individual do lituano, realizada no Folkwang Museum, em Essen, no noroeste alemão, em 1920.
“O conceito em forma de afresco, uma premonição daquilo que poderia vir a ser um novo tempo. Viúva, nobre majestade, é apenas uma proteção para os filhos que certamente vão se impor como a vida futura”, escreveu o crítico e historiador de arte alemão Will Grohmann, no catálogo da exibição de Essen.
Dezessete anos depois, o quadro seria sequestrado pelos nazistas e exposto em Munique para execração pública. Para achincalhar seus autores, as peças da exposição Arte Degenerada foram exibidas desorganizadas, os quadros tortos nas paredes, sob uma iluminação igualmente desajustada.
A mostra percorreu várias cidades da Alemanha e da Áustria até 1941, quando foi encerrada. Ao longo de seus quatro anos, Arte Degenerada foi vista por cerca de 2 milhões de pessoas.
A pilhagem nazista
Para Hitler, confiscar peças de arte era quase tão importante quanto as vitórias militares. De 1933 até o fim da 2ª Guerra Mundial, as unidades militares batizadas Kunstschutz (“proteção da arte”, em alemão), estima-se, roubaram 600 mil obras, por toda a Europa ocupada.
No principal esconderijo do ditador nazista, uma mina de sal em Altausse, cidadezinha nos Alpes austríacos, em maio de 1945, os soldados americanos, conhecidos como “monuments men”, encontraram 6,6 mil quadros e 140 esculturas, além de outros objetos de arte, pilhados pelas forças do Terceiro Reich.
Haviam peças de artistas como Rubens, Michelangelo, Tintoretto, Rembrandt, Vermeer, Leonardo da Vinci, Goya e Jan van Eyck.
Em seus delírios megalomaníacos, Hitler planejava construir o maior museu do mundo, o A.H., em Linz, na Áustria, cidade de sua infância e adolescência.
Nessa época, Segall já vivia no Brasil. Com irmãos morando no País, ele veio a São Paulo pela primeira vez em 1912. O pintor foi um dos primeiros a apresentar a arte moderna europeia aos brasileiros, com exposições realizadas na capital paulista e em Campinas.
Em 1923, o artista se mudaria definitivamente para São Paulo. Dois anos depois, se casou com a tradutora, escritora e pianista paulistana Eugenia Klabin (1899-1967).
O Museu Lasar Segall foi idealizado por Jenny, como Eugenia era conhecida, e criado em 1967 pelos filhos do casal, Mauricio e Oscar.
Artista frustrado
A quem possa interessar, Hitler era um artista frustrado. Por duas vezes, em 1907 e 1908, tentou entrar na Academia de Belas Artes de Viena, sendo reprovado em ambas. Mesmo assim, ele pintou muito, sobretudo paisagens.
No livro Inside Europe, de 1938, o premiado escritor americano John Gunther descreve assim os trabalhos do Führer: “Eles são prosaicos, totalmente desprovidos de ritmo, cor, sentimento ou imaginação espiritual (...) Não é de admirar que os professores de Viena lhe dissessem (...) para abandonar a arte pura sem esperança”.
O modo como ele desenhava as figuras humanas, segundo os críticos, demonstrava um profundo desinteresse pelas pessoas.
Apesar da fúria e violência hitleristas, Segall, Picasso, Chagall, Klee, Kandinsky, Van Gogh, Ernst, Matisse… resistiram — a arte resistiu.
Quando isso não acontece, a perda para a humanidade é enorme.
O nazismo, entre tantas atrocidades que perpetrou, não foi eficiente com esses “degenerados”.
Talvez graças a pessoas como aquele provável soldado alemão que se encantou pela Viúva.