Santo Graal da descarbonização, combustível do futuro ou mina de ouro da transição energética — são muitos (e sempre superlativos) os títulos conferidos ao hidrogênio verde (H2V) por sua importância na luta contra a crise climática.

Até 2030, a nova tecnologia deve movimentar, globalmente, US$ 350 bilhões, em investimentos, conforme dados da consultoria Thymos Energia. Ao Brasil, cabem 8% desse total — o equivalente a US$ 28 bilhões. Pode parecer pouco, mas não é.

“O país tem um grande potencial para a produção de hidrogênio verde, pois nossas condições climáticas e geográficas nos permitem produzir energia limpa em abundância", diz Jaques Paes, professor do MBA de ESG da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ao NeoFeed.

Cerca de 80% da matriz elétrica brasileira vem de fontes renováveis. E energia limpa e abundante barateia o custo de fabricação do gás sustentável.

Pelas análises do instituto de pesquisas financeiras BloombergNEF, seríamos um dos poucos países capazes de oferecer, nos próximos seis anos, H2V a menos de US$ 1, o quilo — os outros são Chile e China. Segundo as estimativas mais conservadoras, no resto do mundo, a mesma quantidade do produto deve sair, por no mínimo, US$ 3.

Pois bem, o Brasil acabar de dar um passo fundamental para fazer com que o combustível do futuro deixe de ser apenas uma promessa.

O Senado finalmente votou o marco legal, que regulamenta o setor, define os critérios para a produção de H2V e concede créditos para sua exploração.

Ao longo de cinco anos, entre 2028 e 2032, serão liberados R$ 18 bilhões, em incentivos fiscais. Como o texto base do projeto de lei foi alterado, o tema retorna para aval da Câmara e, em seguida, segue para sanção presidencial.

A expectativa agora é a de que, com uma regulamentação específica e o potencial brasileiro para a produção do combustível do futuro, os investidores passem a olhar com mais atenção para o país.

Os parâmetros do verde

Os critérios para definir o H2V variam mundo afora. E este foi um dos pontos de alteração do texto do projeto de lei no Senado. Segundo a versão original, o hidrogênio só poderia receber a classificação de verde se viesse de processos alimentados por energia eólica ou solar.

Quando se usa a força dos ventos e dos raios solares para a obtenção do gás, um quilo do composto lança na atmosfera, no máximo, 4 quilos de carbono. Do jeito como o marco legal foi aprovado pelos senadores, agora, admite-se também o emprego do etanol, o que praticamente dobra o potencial poluente da produção exatos 7 quilos de CO².

A mudança no texto do projeto de lei veio com uma emenda do senador Fernando Farias (MDB-AL) e parte da justificativa de que os critérios anteriores seriam muito rígidos.

No mundo, porém, os parâmetros são ainda mais estreitos. Para a ONG Green Hydrogen Organization, por exemplo, só é sustentável o hidrogênio extraído 100% de fontes renováveis e que libere, no máximo, 1 quilo de gases de efeito estufa (GEE) para a mesma proporção do produto.

Na União Europeia, o máximo aceitável são 4,4 quilos e na China, 4,9 quilos. Alemanha e Estados Unidos são mais rigorosos, impondo um teto de 2,8 quilos e 2 quilos, respectivamente.

Os desafios

Altamente energético, com capacidade para liberar três vezes mais energia do que a gasolina, o hidrogênio (H2) é usado para fins industriais há mais de um século. Alimenta maquinários em processos como refinamento de petróleo, produção de metanol e fabricação de compostos orgânicos. Também é útil como combustível para veículos pesados, como trens, navios e ônibus.

Pelos métodos tradicionais, a conversão do gás é feita pela queima de combustíveis fósseis.  A um custo entre US$ 0,50 e US$ 1,7, pelos levantamentos da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), o processo é barato, mas favorece o lançamento de GEE na atmosfera, favorecendo ainda mais o aquecimento global.

As condições climáticas e geográficas do Brasil favorecem a produção de energia eólica, tida como uma das mais adequadas à produção de hidrogênio verde

No ano passado, foi inaugurada na Universidade Federal do Rio de Janeiro uma planta piloto de produção do gás, a partir de energia fotovoltaica

Pesquisadores da Universidade de São Paulo estudam como usar um subproduto da produção de cana para produzir hidrogênio

Apesar de comum, o hidrogênio não está naturalmente disponível para uso. Para obter o gás, é preciso quebrar as moléculas de água

O hidrogênio usado hoje por indústrias de todo o mundo vem 99% da queima de combustíveis fósseis, agravando o aquecimento global

Até que o H2V cumpra seu destino como Santo Graal da descarbonização, há muitos desafios a vencer, apesar dos avanços registrados nos últimos anos.

Além de encontrar formas sustentáveis de produção do gás em grande escala, a preços competitivos, é preciso investir em infraestrutura.

A versão verde do hidrogênio deve ser distribuída para os diferentes setores da indústria. Para longas distâncias, o produto é transformado em amônia e embarcado em navios — por ser menos denso, o composto ocupa grande volume para ser transportado na forma de gás.

Ultrapassados tais obstáculos, o H2V pode ser a chave para um mundo de emissões zero, onde o desenvolvimento não represente uma ameaça à sobrevivência de nossa espécie.

Água e energia

O mais leve dos elementos químicos, o hidrogênio é também o mais abundante do universo — as estrelas, incluindo o Sol, são formadas sobretudo por H2. Na Terra, ocorre principalmente em combinação com o oxigênio, formando a água, e com os hidrocarbonetos, grupo de substâncias compostas apenas por hidrogênio e carbono, como o petróleo.

Apesar de abundante, o gás não está  naturalmente disponível para uso.

A forma mais fácil de obtê-lo é por meio da eletrólise, processo físico-químico que utiliza a energia (de uma fonte qualquer) para a produção de substâncias ou difíceis de encontrar na natureza ou de extração complicada.

No caso, o H2 é obtido a partir da eletrólise da água — nela, a molécula, formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, é quebrada, dando origem ao elemento puro. Dessa reação, sobram apenas água e energia.

Na contas da IEA, apenas 0,1% de todo o hidrogênio produzido hoje no mundo é obtido por meio de eletrólise. O restante todo vem da queima do gás natural, do cravão e de derivados de petróleo.

Do bagaço da cana

Vários centros de pesquisas brasileiros investigam novas formas de tornar a produção de hidrogênio mais sustentável e barata. No ano passado, foi inaugurada, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma planta piloto para o aperfeiçoamento do uso de energia fotovoltaica no abastecimento da eletrólise da água.

Além dos ventos e do sol, nós temos também os campos de cana. Deles é possível extrair não só o etanol, mas um resíduo de sua produção, a vinhaça, altamente poluente, mais agressivo à natureza e aos homens do que, por exemplo, o esgoto doméstico.

Mas, um projeto do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa, da Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo, estuda como usar o subproduto para produzir hidrogênio, já que 95% de sua composição é de água.

O mesmo laboratório trabalha em mais duas pesquisas iniciativas para a produção do gás sustentável. Uma delas utiliza calor para converter etanol em hidrogênio. E a outra atua em outra via, esta eletroquímica.

“Há desenvolvimentos promissores no campo da extração de hidrogênio no campo geológico. Isso nos leva a uma captura do gás gerado, por exemplo, pela reação entre a água e minerais ricos em ferro”, afirma Paes. “Mas ainda enfrentamos desafios significativos como entender os mecanismos exatos de geração desse hidrogênio, encontrar métodos de extração economicamente viáveis e desenvolver soluções técnicas de captura e armazenamento.”

Para ele, a chave para o pleno desenvolvimento do potencial brasileiro para a produção e o uso do hidrogênio verde é o investimento do governo em iniciativas privadas.

Como o professor defende: "Sem as parcerias público privadas, os projetos dificilmente irão para frente. E aí está a grande esperança com a aprovação do marco legal."