O Brasil saiu na frente na corrida do hidrogênio verde e a sanção da Lei 14.948, que criou o marco legal do hidrogênio verde (H2V), consolidou a maior ofensiva em anos em direção à descarbonização do setor produtivo.
O hidrogênio verde é considerado o Santo Graal da descarbonização pela diversidade de sua utilização na era da transição energética, despontando como a melhor alternativa para eliminar as emissões de carbono de caminhões, aviões, siderúrgicas, na fabricação de fertilizantes e de produtos químicos, além de servir como combustível verde para transporte de longas distâncias.
A liberação de R$ 18,5 bilhões em incentivos fiscais até 2032 para atrair investimentos e reduzir o custo de produção, prevista pelo marco, tende a dar um empurrão que faltava para tirar do papel mais de 60 projetos de hidrogênio a partir de fontes renováveis, que somam R$ 188,7 bilhões, segundo levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Essa é apenas uma parcela do potencial brasileiro. A ABIHV (Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde) calcula que os investimentos diretos e indiretos em hidrogênio verde causarão um impacto de R$ 7 trilhões no PIB nacional até 2050 – isso considerando que o Brasil atenda apenas 4% da demanda internacional.
Na corrida pelo hidrogênio verde, a mineradora australiana Fortescue saiu na frente. No início do mês de outubro, o Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação (CZPE) autorizou a primeira instalação de uma planta de hidrogênio verde, da Fortescue, no complexo portuário e industrial do Pecém, no Ceará – que, desde já, desponta como o maior hub de H2V no País, concentrando 40 projetos potenciais.
O pré-contrato assinado pela Fortescue prevê investimentos de R$ 20 bilhões para construção de uma das maiores plantas de hidrogênio verde do mundo no Pecém, com uso de 1,2 gigawatt (GW) de energia renovável para produzir 900 mil toneladas de amônia verde ao ano.
A expectativa é que a planta seja inaugurada entre 2028 e 2029, com produção incialmente voltada para exportação – uma decisão que leva em conta a demanda do mercado europeu, com mandato, metas e pressão para descarbonizar sua atividade produtiva.
“Acreditamos, porém, que a oportunidade a ser oferecida pelo mercado interno é muito maior em agregar valor a esse produto”, afirma ao NeoFeed Luis Viga, principal executivo da Fortescue no Brasil.
Viga aponta algumas vantagens do País na corrida global pelo hidrogênio verde: além da energia renovável “de excelente qualidade e custo competitivo, que pode fazer escala”, ele cita a sinergia com outros produtos nacionais.
“O Brasil importa 90% dos fertilizantes que utiliza no agronegócio, com hidrogênio verde podemos fazer amônia verde e fertilizantes nitrogenados, trazer para o País a indústria de briquete de ferro, essencial para descarbonizar a siderurgia, sem falar na produção da SAF (combustível sustentável de aviação) e de combustível para o setor marítimo”, diz Viga.
E-metanol no pipeline
Além da Fortescue, outros projetos de hidrogênio verde estão em estágio adiantado e voltados para diferentes fins. A European Energy formalizou há um mês parceria com o governo de Pernambuco para construir a primeira fábrica de e-metanol do País, no complexo industrial e portuário de Suape. Metanol produzido a partir do hidrogênio verde, o e-metanol é apontado como uma solução para descarbonização do transporte marítimo.
A empresa de origem dinamarquesa planeja investir R$ 2 bilhões no empreendimento. As obras terão início em outubro do próximo ano, e a unidade deverá começar a funcionar em julho de 2028.
A European Energy já havia fechado parceria com a A.P. Moeller-Maersk, gigante de transporte e logística, também de origem dinamarquesa, para abastecimento dos novos navios da Maersk à base de e-metanol.
Os outros dois projetos que devem sair logo também envolvem amônia verde e e-metanol. A Atlas Agro anunciou no mês passado o início do projeto executivo de sua fábrica de fertilizantes nitrogenados em Uberaba (MG), com investimentos de R$ 4,3 bilhões.
A Atlas Agro, porém, mira principalmente o mercado nacional O objetivo é que a planta de Uberaba produza 530 mil toneladas de fertilizantes por ano para serem comercializadas para grandes produtores da região, num raio de até 500 quilômetros.
Na segunda-feira, 28 de outubro, a Atlas Agro assinou um memorando de entendimento com a Casa dos Ventos, que vai fornecer energia renovável para a planta de Uberaba.
Pioneira no desenvolvimento de parques eólicos para geração de energia, a Casa dos Ventos também está avançando em outro projeto promissor, previsto para o Complexo do Pecém e voltado para o mercado externo.
Em parceria com a TotalEnergies, que adquiriu 34% da empresa, a Casa dos Ventos pretende construir no complexo uma planta para produzir 2 milhões de toneladas anuais de amônia verde, a partir de 2030.
O projeto - com R$ 25,7 bilhões de investimentos previstos - já tem licença ambiental prévia, mas a empresa aguarda a regulamentação do marco legal do hidrogênio verde para oficializar a decisão final de investimento (FID), até o fim do ano que vem.
A cautela das empresas com projetos bilionários de H2V quanto à regulamentação do marco é compreensível, afirma ao NeoFeed Fernanda Delgado, diretora-executiva da ABIHV. Segundo ela, a aprovação do marco legal abriu a primeira janela de oportunidade para estabelecer a indústria do H2V.
“Agora, precisa formatar o arcabouço regulatório para definir certificação, como esses incentivos vão ser propostos, os agentes reguladores, como vai institucionalizar, enfim, a lei detalhada para chegar ao setor industrial e dar-lhe condições para poder operar”, diz Delgado.
A expectativa, segundo Delgado, é que o Ministério das Minas e Energia tenha um rascunho pronto da regulamentação até o fim do ano. Se tudo correr bem, a regulamentação pode sair no começo do ano que vem.
Corrida global
Embora ainda incipientes mundo afora, devido aos altos custos, o hidrogênio verde deve gerar US$ 500 bilhões de investimentos globais até 2050, de acordo com estimativa da consultoria em energia limpa Wood Mackenzie.
O Brasil disputa mercado com China, Japão e União Europeia, que estão investindo pesado em hidrogênio verde. E correm por fora Chile, Egito e Namíbia, que, embora não tenham as mesmas fontes renováveis do Brasil, estão disponibilizando recursos financeiros para atrair investimentos.
A diretora da ABIHV diz que os incentivos públicos aprovados para os projetos de hidrogênio verde devem ser comemorados. “Liberar R$ 18,3 bilhões numa época de austeridade fiscal mostra um alinhamento de política pública industrial e ambiental como nunca vimos antes”, diz Delgado.
Essa aposta, acrescenta Delgado, reflete o potencial que essa nova indústria representa. A executiva vê com o hidrogênio verde uma grande oportunidade de não só revitalizar a indústria nacional como prepará-la para a era da transição energética.
“O hidrogênio verde já é uma indústria sofisticada e de alto valor agregado, podemos usá-lo para fazer aço verde, fertilizante verde e dar um passo a mais de sofisticação na cadeia produtiva”, afirma Delgado.
Parte do otimismo que dessa vez vai ser diferente se apoia no planejamento estratégico envolvendo vários setores da economia para tornar atrativo a investidores estrangeiros apostar no Brasil.
Viga, da Fortescue, destaca em especial o trabalho desenvolvido pelo governo do Ceará, que desde 2021 começou a planejar a transformação do complexo do Pecém num hub de hidrogênio verde, buscando se aproximar do setor privado e oferecendo todas as condições para atrair investimento estrangeiro, envolvendo a federação das indústrias local e a Universidade Federal do Ceará (UFCE).
Segundo ele, isso explica o fato de o Pecém concentrar 40 dos 60 projetos previstos de H2V, a maioria de empresas de fora do País. “A ideia de criar um hub no Pecém coloca produtor e consumidor no mesmo local, com estrutura compartilhada; o custo total é diluído entre várias empresas, além disso essa aproximação com o poder público dá segurança que os problemas vão ser resolvidos”, afirma Viga.
Enio Pontes de Deus, pesquisador do programa de Engenharia e Ciência dos Materiais e coordenador do Laboratório de Falhas de Materiais (LAMEFF) da UFCE, afirma que o programa de hidrogênio verde do Pecém deu um salto quando o complexo fechou em 2022 acordo com o Porto de Roterdã, principal hub de distribuição de H2V na Europa.
"A primeira parte foi bem-feita, mas não é só gerar o hidrogênio verde”, afirma Pontes de Deus. “Precisamos lidar com a questão de distribuição e armazenamento, temos limitações técnicas com as linhas de transmissão de energia, ausência de padrões e equipamentos caros, entre outros problemas.”
Pontes de Deus adverte que o Brasil precisa de novas soluções tecnológicas para o mercado nacional de H2V. Ele cita um programa inovador desenvolvido pela UFCE, que extrai uma membrana da casca de camarão e de caranguejo para ser usada na fabricação de eletrolizadores.
A membrana sintética, normalmente usada no processo, impacta no custo dos eletrolizadores e a solução cearense ainda resolve um problema ambiental, de descarte das cascas de camarão e de caranguejo.