O Brasil vive um momento histórico e com possibilidade de se consolidar como um dos líderes globais na área de transição energética e descarbonização da indústria, graças à sua matriz limpa que cresce com projetos avançados de bioenergia.

É o que assegura o brasileiro André Clark, vice-presidente sênior para a América Latina da Siemens Energy, grupo global de geração e distribuição de energia. Criada em 2020, quando se separou da gigante alemã Siemens, a companhia está presente em 90 países, com uma carteira de projetos de € 112 bilhões em praticamente todos os segmentos de energia.

Na Brasil, a empresa toca vários projetos, que Clark acompanha de perto. Entre eles, o da Gás Natural Açu (GNA), o maior parque termelétrico a gás natural da América Latina, da qual Siemens Energy é acionista, localizado no Porto do Açu (RJ). Por isso, o executivo tem autoridade para falar da política energética verde brasileira, que o impressiona.

“Nunca vi, na minha vida executiva, uma convergência da sociedade, do setor privado, Executivo, Legislativo é até do Judiciário na direção de que a oportunidade verde para o Brasil é de fato relevante, com a perspectiva de que cabe todo mundo nela”, afirma Clark, ao NeoFeed.

Segundo ele, o Brasil está colhendo mais de cinco décadas de um planejamento estratégico de energia muito bem executado, iniciado na década de 1960, com a construção de hidrelétricas e acrescido da recente expansão das fontes eólica e solar.

“Isso em cinco décadas que foram profundamente difíceis para o País, que ainda termina esse ciclo com o sistema elétrico inteiro privatizado”, elogia.

Clark diz que o País tem potencial de ocupar a liderança global de vários segmentos de energia do futuro, como biodiesel, hidrogênio verde e HVO, além de exportar para o mundo sua tecnologia verde.

E vê até ganhos geopolíticos: “O Brasil criou uma imagem de neutralidade verde para o mundo, construtivamente benigna e pragmática. A ideia de desenvolvimento sustentável brasileira é a mais moderna do planeta.”

Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista:

A Siemens Energy foi criada em 2020 visando a desenvolver projetos de transição energética na América Latina. Quais são as áreas em que os projetos mais avançaram?
Quando abrimos capital específico para isso já era claro que as transições energéticas dos vários países pelo mundo não aconteceriam nem de forma ordenada nem de forma tranquila, mas em volume crescente. Absolutamente todos os negócios da Siemens Energy envolvendo transição energética estão presentes na região e em grande quantidade: a geração térmica - as turbinas a gás e a vapor-, toda a área das redes de alta voltagem, transporte de energia na sua essência e toda a área de descarbonização de energia para a indústria, que a gente chama de transformation industry, além da área de renovável, as famosas eólicas, tanto onshore quanto offshore.

A transição energética avançou muito no Brasil nesse período?
Sim, com enorme demanda, tanto aqui como no resto da América Latina. Ocorreram muitas mudanças e rápidas. Um exemplo é o crescimento de 430% das redes de transmissão. Ninguém esperava isso, essas redes de transmissão sempre foram um negócio sem graça, limitado aos especialistas, configuradas para crescer 2% ao ano. Era uma tecnologia que avançava de forma estável e virou o negócio mais sexy e moderno do setor.

Houve grandes avanços tecnológicos recentes nessa área?
O primeiro choque de realidade ocorreu na indústria de transmissão de grandes blocos de energia. Isso está acontecendo no mundo inteiro. Um exemplo são as chamadas UHVCs, as linhas de transmissão de altíssima capacidade, que transportam energia acima dos 800 mil quilovolts em grandes blocos, de 5 gigawatts (GW). Um projeto dessa especialidade ocorria a cada seis anos e agora virou padrão. Em alguns países, como nos Estados Unidos, quem andava era molécula. Transportava-se o carvão ou o gás e a geração de energia era feita perto do centro de consumo. Com as renováveis em crescimento, quem tem de andar é o elétron. Inverteu-se a lógica dos grandes sistemas.

"As  linhas de transmissão, que avançavam 2% ao ano, hoje crescem 430% e viraram o negócio mais sexy do setor"

Qual o impacto disso no Brasil?
Com a vasta expansão de energia solar e eólica na nossa matriz, toda ela concentrada no Nordeste e norte da Minas Gerais, esses blocos de energia sendo transportados para o Sudeste exigem outro nível de estabilidade e tecnologia dessas linhas de transmissão. Então, isso acaba gerando esses leilões bilionários de energia que estamos vendo aqui. Há quatro anos, um grande leilão de transmissão de energia movimentava R$ 1 bilhão. Os dois leilões deste ano podem gerar até R$ 50 bilhões em investimentos.

A Siemens Energy também tem grande atuação no setor de gás natural. Quais são os investimentos previstos para esse setor?
Um dos nossos maiores investimentos diretos no mundo em geração térmica a gás ocorre no Brasil, no porto de Açu – um porto energético que recebe minério, petróleo e gás. Açu é um hub absolutamente estratégico, um dos locais mais competitivos do Brasil nesse jogo do gás natural liquefeito (GNL), com a recepção dos dois gasodutos, fora a possibilidade do gás offshore, quando vier dos poços de petróleo de alto-mar associado ao pré-sal.

O Brasil tem avançado nessa área do gás?
Tivemos avanços fundamentais. Primeiro, a legislação começa a se estabilizar, dando clareza para os investidores. Com isso, alguns planos de negócio começam a aparecer, como de estocagem em larga escala de gás. Se não tivermos um acumulador do outro lado que receba esse gás, armazene e revenda, esse sistema não funciona. Existe uma necessidade de expansão da rede, contudo há uma confusão gerada pelos famosos “jabutis” da Eletrobras, achando, que ao colocar térmicas em lugares onde tem gasoduto, iria viabilizar a interiorização do gás em larga escala. Isso é uma falácia. A usina térmica sozinha não dá retorno para isso. São esses perigos da governança do setor energético que nos preocupam. Existe um certo voluntarismo que não seria necessário.

Você se refere à interferência política no setor energético?
O fato é que a questão da energia elétrica ficou politizada. Estão tentando discutir correção de tarifa e subsídio no âmbito do Congresso Nacional, sendo que quem deve decidir isso é o órgão regulador, a Aneel. O Brasil não precisa mais de subsídio na área de energia, isso tem de acabar. A sociedade quer discutir o setor elétrico, mas fazer isso exclusivamente no Congresso Nacional, sem a base de planejamento que o Brasil tem e faz de forma competente, com o corpo técnico do Ministério de Minas e Energia, é um erro.

Então é possível dizer que, apesar de tudo, temos uma estratégia energética de longo prazo bem planejada?
A resposta, surpreendentemente - porque estamos acostumados a ficar sempre criticando -, é um grande e enorme sim. E está sendo muito bem executada. O primeiro argumento: nunca vi, na minha vida executiva, uma convergência da sociedade, do setor privado, Executivo, Legislativo é até do Judiciário na direção de que a oportunidade verde para o Brasil é relevante e com a perspectiva de que cabe todo mundo nela. Da Amazônia às indústrias do Nordeste, passando pelo Sul e Sudeste.

E o segundo argumento?
Esse sonho é tão potente que o Brasil chegará em 2027 com excedente de energia renovável do tamanho da sua demanda. Serão mais de 100 gigawatts (GW) de excedente de energia solar e eólica. Essa sobra será tão grande que a segunda ideia é novidade no Brasil: essa oportunidade só se configura se for para o mundo, se for para exportar.

Mas exportar o quê?
Produtos: comida verde, aço verde, vidro verde, data centers verdes, do Brasil para o mundo. O primeiro aspecto dessa ideia de exportar que aparece, após oito anos de discussão, é o mercado de carbono. Grande discussão e com um grande erro estratégico do agronegócio, que decidiu ficar fora desse mercado. O segundo aspecto apareceu como consenso da sociedade: o plano do governo de transição ecológica, em linhas gerais, é absolutamente moderno, no sentido de abrir espaços para o desenvolvimento econômico no Brasil.

“O Brasil chegará em 2027 com excedente de energia renovável do tamanho da sua demanda”


Quais são os principais pontos destacáveis desse plano?
Há uma sequência, uma articulação, uma certa coordenação do “incoordenável”: o Brasil é grande e complexo e um plano desse tem inúmeras vertentes: a energia, o agronegócio, a exportação e outras aspirações. Há muita ordem dentro dessas possibilidades, uma vasta discussão com a sociedade local e global, porque é feita no ano em que estamos recebendo o G20, Brics, sem falar na COP30 do clima, em 2025.

Quais as vantagens de sediar esses encontros?
Isso ajuda porque a discussão desses encontros é verde e é para o planeta. O G20 é o único evento em que o mundo ainda se reúne para discutir alguma coisa. O resto é paulada para controlar. E, vale lembrar, apesar de todos os erros de comunicação dos fatos recentes na sua política externa, o Brasil criou uma imagem de neutralidade verde para o mundo, construtivamente benigna e pragmática. É um momento muito interessante. O Brasil que o mundo reconhece é o país da Rio-92, líder da concepção de desenvolvimento sustentável. Sendo que a ideia de desenvolvimento sustentável brasileira é mais moderna do que qualquer outra do planeta.

O brasileiro não reconhece essa característica positiva do País?
Somos muitos críticos em relação ao nosso país, mas é importante lembrar alguns fatos. Toda a beleza da nossa matriz elétrica renovável, baseada em hidrelétricas e depois seguida de eólicas e solar, é resultado de uma política de planejamento de sucesso. Começa na década de 1960 e o Brasil constitui uma certa independência elétrica, construindo hidrelétricas e grandes linhas de transmissão. Isso em cinco décadas que foram profundamente difíceis para o País, que ainda termina esse ciclo com o sistema elétrico inteiro privatizado.

Qual o efeito disso?
Vale lembrar que 80% do crescimento da geração de renováveis no Brasil se deu no mercado livre de energia. O mercado regulado ficou com um pedaço muito pequeno – apenas as energias de emergência, gás, térmicas e etc. Ao fim desse ciclo, vemos um filme de grande sucesso e nele está, inclusive, a privatização da Eletrobras, que não representa mais risco estratégico para o Brasil.

Há outros cases de sucesso de energia fora do setor elétrico?
Outro exemplo é o pré-sal. Criamos tecnologia para explorar petróleo a 7 mil metros de profundidade, com toda logística e segurança. Isso não saiu do zero, e sim, de investimento em larga escala do Estado brasileiro. O carro a álcool, idem, uma política industrial de mais de 30 anos. Temos também o biodiesel, sucesso na área de energia. Poucos países fizeram políticas industriais dessa magnitude com tecnologias tão sofisticadas e na direção verde – às vezes sem querer, pois há 40 anos não se falava de mudanças climáticas.

Entre todos esses segmentos do setor de energia dá para prever qual será o mais bem-sucedido?
Sem medo de errar, o Brasil se destacará na bioenergia. Teremos o crescimento do etanol de segunda geração e isso abre espaços gigantescos na base industrial brasileira do setor sucroalcooleiro. Vai mudar o papel das destilarias. E temos o biodiesel e a transição do biodiesel para o HVO (diesel verde). O Brasil continua fazendo pesquisa e desenvolvimento de primeira ordem nesse espaço. Seremos grandes exportadores e um grande player a partir de biodiesel e do hidrogênio verde. Não há geografia tão bem-preparada como a do Brasil para produção e custo de hidrogênio verde. A pergunta é: o que vamos fazer com esse hidrogênio verde?

Exportar?
Sim, mas como? Produzir hidrogênio verde, colocar num navio e exportar não vai funcionar. A tecnologia ainda não está ponta, vai demorar dez anos para ter logística e seria um erro. O correto seria pegar essa molécula, transformar em algum bem industrial e aí sim exportar. A ordem de mérito para o Brasil, hoje, acredito que seja a transformação em aço verde por meio de briquete de ferro (HBI). O Brasil é produtor de minério de ferro de altíssima qualidade. O aço verde será o material construtivo de menor pegada de carbono se comparado ao cimento, que não tem descarbonização possível em larga escala. Depois, a petroquímica verde (fertilizantes, plásticos, tudo verde) e, na sequência, toda a conversão do hidrogênio de baixo carbono em metanol verde, o e-metanol. Tem ainda um quarto elemento que vai ser importantíssimo, que é a indústria dos data centers.

Qual o papel dos data centers nessa equação?
Um data center de inteligência artificial (IA) consome 20 vezes mais energia que um data center normal. Todo o mundo vai usar IA, inclusive as grandes empresas de tecnologia, e elas querem ser verdes. Além de IA, Internet das Coisas (IoT) e 5G também vão gerar grande quantidade de dados, que têm de ser guardados em algum lugar. Isso tudo gera energia. O Brasil, na sua confiabilidade geopolítica e neutralidade benigna, pode ser o centro seguro e confiável de alocação de data centers.

O governo aposta também no Nova Indústria Brasil (NIB). Quais são os pontos do programa que chamam a atenção?
O programa tem a virtude de entender que o mundo vai explodir no lado ruim das mudanças climáticas, que vão quebrar o modelo econômico atual. E estamos no limite do nosso conhecimento. Portanto, o NIB tem a clareza de ter sido criado para este mundo. Mas ele nasce com uma quantidade de dinheiro alocada que não dá nem para começar o jogo – e isso é bom.

Qual a vantagem de não ter dinheiro para executá-lo?
É o entendimento de que a revolução da transição energética será tão gigante que precisaremos buscar recursos no mercado de capitais, que por sua vez certamente terá de quintuplicar de tamanho no Brasil, com dinheiro nosso e de fora. Gastar mais que os cerca de R$ 300 bilhões do BNDES previstos seria uma irresponsabilidade fiscal. A solução terá de vir de novos padrões, possibilidades e ferramentas de atração de capital e de financiamento, da sociedade ou de outros países que queiram investir aqui. As reformas que emanam desse plano são gigantescas. Essa é outra oportunidade rara.