O setor do gás natural pretende barrar as alterações no projeto de Lei 4.516/2023, enviado pelo governo ao Congresso Nacional e que está tramitando em regime de urgência na Câmara, sob o argumento de que, se for aprovado do jeito que está, sem consultar o setor, vai gerar uma fatura de R$ 570 milhões e desestruturar todo o mercado de gás.
A luta, porém, é inglória. Conhecido como PL do Combustível do Futuro, a lei prevê várias iniciativas para estimular e ampliar o uso de fontes renováveis de energia, visando a descarbonização do setor de mobilidade.
A proposta original, que previa a criação de programas específicos para cada tipo de biocombustível - como de diesel verde (HVO), combustível sustentável de aviação (SAF) e biodiesel - foi mexida pelo relator na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), que incluiu o biometano, combustível renovável derivado do biogás que, por sua vez, é feito a partir da decomposição de materiais orgânicos de origem vegetal ou animal.
O PL determina que produtores e importadores de gás natural terão de comprovar, anualmente, a compra ou consumo de uma quantidade mínima de biometano em relação ao volume de gás natural que vendem ou consomem. Como opção, os agentes da cadeia do gás também poderão comprovar as metas adquirindo um selo verde específico, o Certificado de Garantia de Origem de Biometano (CGOB).
A proposta é que a compra obrigatória do biometano siga uma curva crescente: começa em 2026 com um percentual de 1% do volume de gás comercializado e deverá chegar a 10% até 2034, com limite mínimo de biometano de 800 mil m³ por dia.
Vários aspectos do PL referentes ao biometano causaram surpresa. Um deles é incluir a exigência de compra ou consumo para toda a cadeia do gás de um biocombustível com pouco impacto no setor de mobilidade, para o qual o PL do Combustível do Futuro foi criado.
“Esse PL não faz sentido para o setor, quem consome gás natural basicamente é a indústria em geral e as termoelétricas a gás quando acionadas, e muito pouco no segmento de mobilidade”, adverte Adrianno Lorezon, diretor de gás natural da Abrace (Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres) e coordenador do Fórum do Gás, que reúne empresas do setor.
Segundo ele, a imposição do certificado específico do biometano, o CGOB, é ainda mais surpreendente num momento em que está sendo discutida a regulamentação do mercado de carbono, cujo foco principal é justamente criar uma política de descarbonização das indústrias.
“O CGOB tem precificação divergente do mercado de carbono, no qual a indústria vai poder escolher o mais barato para reduzir emissão, mas o PL na prática obriga a indústria do gás a comprar só certificado de biometano”, acrescenta.
Lorezon vê poucas chances de o conteúdo do PL referente ao biometano ser alterado. Ele cita pressões políticas no Congresso para a inclusão do biocombustível no projeto. A matéria-prima do biometano é formada por rejeitos orgânicos vegetais, animais ou urbanos. A maior parte do biocombustível disponível é produzida a partir do bagaço de cana ou de resíduos de aterros sanitários.
“Os produtores de biometano são, em em sua maioria, do agronegócio, além do segmento de aterros sanitários”, diz.
O deputado Arnaldo Jardim, relator do PL, é vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). “Com o agro apoiando, a incursão do biometano repercutiu no governo”, admite Lorezon.
Um aspecto chave do debate é o custo do biometano. “Trata-se de uma caixa preta, pois a ANP (Agência Nacional de Petróleo) só divulga os contratos de gás natural com os distribuidores, e não os de biometano”, diz Lorezon.
O biometano é mais caro que o gás natural com uma diferença que pode variar de 50% a 100% porque há mais demanda do que oferta. “Hoje, o uso do biometano é voluntário, quando virar obrigatório é óbvio que vai ficar ainda mais caro”, diz o coordenador do Fórum do Gás.
Impacto financeiro
Em manifesto divulgado no final de fevereiro, a entidade diz que há estudos insuficientes sobre a nova produção de biometano a partir de 2026, bem como de qual será o custo do atributo verde deste energético, considerando um mercado obrigatório de aproximadamente 800 mil m³ por dia.
Assim, caso o biometano já no início do programa custe o dobro do gás natural, o impacto financeiro direto para a sociedade brasileira seria cerca de R$ 570 milhões ao ano via aumento do preço do gás natural, sem considerar os custos relativos à infraestrutura.
De acordo com Sylvie D’Apote, diretora de Gás Natural do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás), a logística para produzir e produzir o biometano num país de dimensões continentais como o Brasil é complexa.
“Há produção nos aterros sanitários em grandes cidades, mas a partir da cana é de forma dispersa, como São Paulo, Paraná, Goiás e Minas Gerais”, diz. Segundo ela, o pequeno produtor de gás na Região Norte, por exemplo, terá de obrigatoriamente comprar biometano de locais distantes, aumentando os custos.
“Se o produtor tiver de comprar e depois revender o certificado, terá de criar uma equipe para negociar isso, ou seja, também vai aumentar seus custos”, acrescenta. “Na prática, é um novo negócio.”
Renata Isfer, presidente executiva da Abiogás (Associação Brasileira do Biogás), entidade que ajudou a articular o texto do PL, defende as novas diretrizes. Ela afirma que o setor de biometano brasileiro, com potencial de ser o maior do mundo, é o único entre os biocombustíveis que não tinha política estruturante.
Segundo ela, os agentes terão a opção de comprar a molécula de biometano ou o certificado de origem – ou ambos – para fins de cumprimento das metas anuais. “A criação do certificado é o grande diferencial, pois separa o atributo ambiental do atributo molécula da produção de gás”, diz.
Isfer afirma que, com o CGOB em mãos, o produtor do gás poderá aposentar (tirar definitivamente de circulação) o papel, dentro de suas iniciativas de descarbonização, ou poderá negociar esse certificado no mercado, para que seja aposentado por um consumidor interessado no atributo ambiental do biometano, por exemplo.
“Com a criação desse certificado, quem precisa pagar pelo custo adicional tem efetivamente interesse em descarbonizar”, diz.
A presidente da Abiogás rebate as dúvidas de outros elos da cadeia se haverá oferta suficiente de biometano e a preocupação com uma possível pressão sobre o preço do gás natural.
“O mercado de gás é muito concentrado no Brasil, precisamos de mais agentes se quisermos virar um mercado verde, com multiplicidade de ofertas”, diz.
Ela faz um cálculo para mostrar que o impacto no preço do gás não vai ser relevante, citando 6 plantas com autorização pra comercializar, o que dá uma produção de 400 mil m³ por dia. Há também plantas com autoprodução que podem usar o biometano e comercializar o certificado, que produzem 600 mil m³ por dia.
“Já temos portanto 1 milhão m³ por dia hoje, suficiente para cumprir a meta mínima de 1%”, assegura. “Mais do que isso, na ANP existem 18 pedidos de autorização para entrar em funcionamento, que vão agregar mais 800 mil m³ por dia."
Segundo ela, esses limites de 1% a 10% vão ser tão pequenos no potencial de biometano que vem por aí que não vão afetar a competitividade. “Pelo contrário, vai conseguir criar um mercado líquido de gás e ainda vai descarbonizar o setor.”
A presidente da Abiogás admite que o PL foi a melhor forma de colocar o biometano na agenda verde do País. “Do ponto de vista legislativo, tem oportunidades que aparecem apenas uma vez”, diz, acrescentando que não tratar o tema agora ou limitar o uso do biocombustível representa manter esse potencial apenas como potencial.
Para Lorezon, da Abrace e do Fórum do Gás, o PL pode abrir um precedente perigoso. “Já vi entidades do setor do hidrogênio pedindo para incluir o hidrogênio verde nos gasodutos, o que só vai encarecer a cadeia do gás”, adverte.