Carreira e família — A jornada de gerações de mulheres rumo à equidade é muito mais do que um livro feminista sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho. Ao reunir os estudos realizados ao longo de três décadas, a economista americana Claudia Goldin, professora da Universidade Harvard, ajuda a compreender as mudanças nas relações de trabalho ao longo de nosso tempo.
Inovador e profundo, o material rendeu a ela o Prêmio Nobel de Economia, em 2023 — e por isso merece a atenção inclusive daqueles que, normalmente, ficam com um pé atrás sobre o tema. A obra chega ao Brasil, agora, em setembro, pela Companhia das Letras.
Se há um século a mulher tinha de escolher entre ter uma carreira ou uma família, hoje tudo mudou. E o caminho é sem volta, alerta Claudia. A sociedade evolui e todos nós precisamos nos adaptar. Principalmente as empresas.
As mulheres estão se formando no nível superior em números recordes e alcançam os principais títulos de pós-graduação. Assumem os cargos mais altos em maior escala e conquistam melhores condições para seguir carreiras de longo prazo. Um número maior delas está até tendo mais filhos. Mas o que explica então o persistente hiato salarial entre elas e os homens?
Ao discutir as interdependências entre normas de gênero, maternidade e carreira, a autora não apenas considera os “sintomas” da desigualdade como reforça a necessidade de investigar e intervir na verdadeira origem da inequidade: “Se quisermos erradicar ou mesmo apenas estreitar o hiato salarial, é preciso, em primeiro lugar, investigar mais fundo até a raiz desses obstáculos e dar ao problema um nome mais preciso: ‘trabalho ganancioso’”.
Trabalho ganancioso, ou greedy work, é aquele que premia a dedicação extra, que valoriza quem está sempre disponível.
Como, em geral, as mulheres são responsáveis também pelos cuidados domésticos, elas acabam preteridas.
A partir de quase três décadas de uma pesquisa original, Claudia analisa a história econômica das mulheres no mercado de trabalho até a pandemia da covid-19. Em paralelo, apresenta mudanças significativas na legislação, como as leis antidiscriminação e seus impactos nas corporações.
Sua análise é baseada em sólida pesquisa histórica. Em 1963, por exemplo, observa ela, em seu livro A mística feminina, a ativista Betty Friedan (1921-2006) escreveu sobre as mulheres que se graduavam na faculdade e se sentiam frustradas no papel de mães restritas ao lar, observando que o problema delas “não tem nome”.
Mais de 60 anos depois, grande parte das mulheres com graduação segue uma carreira, mas suas remunerações e promoções — comparadas às dos homens — continuam a ser atropeladas. E essa dificuldade parece ter soluções imediatistas: “Deveríamos ensinar às mulheres a serem mais competitivas e a treiná-las para negociarem melhor (seus salários)”.
Nesse sentido, Claudia levanta algumas questões: as mulheres precisam de mais impulso ou necessitam se envolver mais? Ela questiona ainda por que as mulheres não conseguem galgar os degraus da escada corporativa com a rapidez de seus colegas homens.
No âmbito privado, outras dúvidas perseguem muitas mulheres. São dilemas confidenciados a parceiros na intimidade ou em conversas com as amizades mais próximas: “Será que namoro alguém cuja carreira consome tanto tempo quanto a minha? Será que desisto de formar família, mesmo tendo certeza de que quero uma? Será que congelo meus óvulos se aos 35 anos não estiver com ninguém?”.
E não só isso: “Estou disposta a deixar uma carreira ambiciosa (a qual venho construindo desde que fiz meu teste vocacional) para criar filhos? Se eu não me dispuser, quem vai preparar a merenda, pegar minha filha na natação, atender à ligação apavorante da professora da pré-escola?”. E por aí vai.
Assim, as mulheres, conclui a autora, ficam para trás em suas profissões, enquanto os homens lhes dizem que são elas mesmas que criam tais problemas. Que competem com agressividade suficiente ou não negociam o bastante, não exigem um assento à mesa e, quando o fazem, não o reivindicam de forma adequada.
Para Claudia, se todas essas questões fossem milagrosamente corrigidas, o mundo das mulheres e dos homens, dos casais e genitores jovens, se configuraria de maneira diferente? Embora um acalorado debate público e privado tenha trazido à luz esses temas importantes, diz a autora, muitas vezes erramos por desconsiderar a enorme escala e a longa história das disparidades de gênero.
Uma leve advertência a uma companhia, uma mulher que consiga chegar ao conselho diretor de uma grande corporação, uma empresa que conceda salário paternidade a seus funcionários: soluções assim são o equivalente econômico a jogar uma caixinha de Band-Aid para alguém com peste bubônica, compara a economista.
“Essas respostas não serviram para anular as diferenças no hiato salarial entre os gêneros”, diz. E nunca fornecerão uma solução completa para essa desigualdade, pois tratam apenas dos sintomas.
A autora afirma que a pandemia ampliou algumas questões, acelerou outras e expôs ainda mais o que vinha supurando há muito tempo. “Mas o cabo de guerra entre cuidar e trabalhar que estamos enfrentando é muitas décadas anterior a essa catástrofe global”. Na verdade, a jornada para alcançar e então equilibrar carreira e família está em andamento há mais de um século.
No entanto, é preciso compreender como a flexibilidade varia entre setores e ocupações, para elaboração de políticas eficazes que possam reorganizar o trabalho. Um exemplo de política discutida no livro, afirma ela, é o fornecimento de incentivos aos empregadores e às empresas para reduzir as penalidades associadas a acordos de trabalho flexíveis.
À medida que os empregos possam ser redesenhados para aumentar a flexibilidade, sem custo de produtividade, haveria redução das penalidades no mercado de trabalho pelo tempo gasto com a família. Além de ajudar a promover a equidade do casal.
Claudia destaca que a pandemia de covid-19 trouxe o crescimento do trabalho remoto e flexível, que pode beneficiar as mulheres com filhos ao tornar o trabalho menos ganancioso.