Ao morrer, em abril, vítima de câncer, aos 77 anos, o escritor americano Paul Auster, autor da consagrada Trilogia de Nova York, sabia que havia publicado, seis meses antes, um pequeno grande livro e, que, possivelmente, seria seu último. Pequeno só no número de páginas — 176. E pôde testemunhar que não foram poucos os que o definiram como a obra-prima deste que é um dos maiores romancistas do mundo.

Quem leu alguns de seus títulos anteriores deve concordar que Baumgartner é o livro mais intenso, profundo e confessional, em que Auster abriu mão de qualquer pudor e até de racionalidade para falar de um tema caro a escritores sofisticados do seu quilate: o amor. Aqui, do amor incondicional, intenso, arrebatador e eterno, com toda dor que tudo isso implica quando se tem de lidar também com a morte.

É uma história que trata, portanto, de luto e memória, sobre a impossibilidade de superar a perda e um esforço de conviver com a ausência de uma pessoa amada. Talvez o melhor termo que defina isso e que só existe na nossa língua é saudade.

Boa parte da narrativa se passa quando o famoso escritor e professor de filosofia Sy Baumgartner está prestes a completar 70 anos e decide que chegou a hora de se aposentar. Ele é autor de nove livros e numerosos trabalhos mais curtos sobre questões filosóficas, estéticas e políticas, membro querido do corpo docente da Universidade Princeton durante os últimos 34 anos.

Há exatos dez anos, ele sofre de forma quase desesperada por causa da morte da esposa Anna, uma respeitada tradutora — inclusive de português — e poetisa que nada publicou, vítima de afogamento em uma praia. Ele continua a viver no mesmo lugar onde foram felizes por 40 anos, preserva seu escritório com um amontoado de manuscritos, dois romances inacabados e 218 poemas — parte ele viria reunir em um livro que fez razoável sucesso.

Por onde olha, Anna está silenciosamente presente. É uma tristeza tamanha que ele cuida de suas roupas, arruma-as de vez em quando e até manda para que sejam lavadas.

Auster escreve: “E, se sua cabeça e seu coração haviam sido poupados do ataque, era apenas porque os deuses perversos e zombeteiros lhe tinham concedido o direito duvidoso de seguir vivendo sem ela. Agora ele era nada mais que o toco de um homem, um homem que perdera aquela metade de si que o fazia inteiro — e, sim, os membros perdidos ainda estavam lá, ainda doíam, doíam tanto que por vezes sentia que seu corpo estava prestes a pegar fogo e ser consumido ali mesmo.”

Durante os primeiros seis meses de viuvez, seu personagem viveu num estado de confusão mental tão profundo que, às vezes, despertava pela manhã e esquecia que Anna estava morta: “Como ela sempre acordava mais cedo, já ativa pelo menos quarenta minutos ou uma hora antes que ele conseguisse abrir os olhos, Baumgarten se acostumou a descer de uma cama vazia e ir como um sonâmbulo até a cozinha deserta para preparar uma caneca de café, frequentemente acompanhado pelo som tênue da máquina de escrever de Anna na salinha que ficava na outra extremidade do andar térreo.”

Muito provavelmente Paul Auster sabia que "Baumgartner" seria seu último romance, mas ele viveu a tempo de ver o livro ser aclamado como uma obra-prima (Reprodução companhiadasletras.com.br)

Em outra passagem, o autor observa: “Mas, na medida em que posso compreender o que está se passando agora, posso dizer honestamente que não tenho pena de mim, que não estou tomado pela autocomiseração ou lamentando aos céus. Por que eu? Por que não eu? As pessoas morrem. Morrem moças, morrem velhas, morrem aos cinquenta e oito anos. Eu sinto falta dela, isso é tudo. Era a única pessoa no mundo que amei, e agora tenho de encontrar uma maneira de continuar a viver sem ela”.

Mesmo que o tempo voasse e ele tivesse de enfrentar sozinho a velhice, tudo se mostrou tortuoso demais. “Ao fim de um mês vivendo a sós na casa vazia, ele passara a sentir tanta saudade daqueles sons (da máquina de escrever de Anna) que, às vezes, ia até a salinha, se sentava junto à máquina silenciosa e datilografava alguma coisa — qualquer coisa — só para ouvi-los de novo”.

Por mais que se esforçasse, Baumgartner não conseguia recomeçar a vida. Por anos, comprou livros cuja maioria dos pacotes jamais abrirá — e os doa a uma biblioteca pública —, apenas para tentar uma aproximação com a entregadora dos Correios, que lhe é simpática, mas não lhe dá a menor chance até mesmo de amizade ou convite para um café. Tenta se apaixonar por uma antiga amiga da esposa, Judith, declara-se para ela, mas a mulher bem mais jovem se afasta, talvez pela diferença de idade.

Em um romance febril, Auster não criou uma história de obsessão, mas de amor. É a saga de vida inteira de um casal que se prometeu amar até o fim. Só há ternura e entrega, tanto dos protagonistas — e um deles é a falecida Anna — quanto do próprio autor. Não por acaso, a história de cada um, de seus pais e avós, é narrada de modo fragmentado e, com isso, toda a dramaticidade de uma existência é revelada quando o leitor monta o quebra-cabeça.

Da Companhia das Letras, o livro custa R$ 79,90 (Divulgação)

Sem ficar impassível, a dor da ausência é combatida pelo bravo Baumgartner de diversas formas. Ler boa parte do que Anna deixou escrito é uma delas. Desse modo, não é possível ficar indiferente à dramaticidade que o autor dá à sua história. À medida que a leitura avança, o leitor, ao ter empatia pelo professor, pode ser acometido com uma angústia até mesmo de sua própria existência, suas perdas e tentativas de dar continuidade e retomar algum sentido na vida.

Baumgartner é daqueles livros que corremos o risco de ficar um bom tempo digerindo e não o esquecemos por muitos anos.

E o seu caráter autobiográfico se confirma quando, no extenso capítulo 4, o personagem vai em busca dos antepassados de sua mãe e revela ao leitor que tem sobrenome Auster. A informação aparece depois de quase três quartos de páginas.

Como em todos os seus outros romances, centrados em tipos comuns e suas angústias tão pessoais, mas tão comuns a todos nós, embora o judaísmo funcione sempre para definir comportamentos e influenciar atitudes, Auster sai de cena com uma narrativa de profunda sensibilidade, bondade e generosidade, em que idealiza o amor perfeito e indestrutível, quase utópico. Por que não?

Se o comum é um grande escritor perder a força e chegar ao fim da vida com temas batidos e histórias ou personagens repetitivos, construções frouxas e mal amarradas, Auster, nesta obra luminosa, quebra a regra e se despede com um de seus livros mais bem escritos.

Triste, sim, até demais. Porém reconfortante, acolhedor a todos que vivem, viveram ou têm a expectativa de sofrer com os dramas de Baumgartner.