“Um homem não sente dificuldade em caminhar por uma tábua estreita enquanto acredita que ela está apoiada no solo; mas ele vacila — e afinal despenca — ao se dar conta de que a tábua está suspensa sobre um abismo.”
O trecho pertence ao livro “Trópicos Utópicos”, de Eduardo Giannetti, que lembrou da “tábua de Avicena” em nosso evento de 15 anos na quinta-feira, 28 de novembro. “Se é verdade que a percepção não é o fato — a tábua esteve sempre onde está —, isso em nada diminui a importância — e eventual primazia — do fato da percepção.”
Em entrevista do gestor Luis Stuhlberger ao NeoFeed publicada na segunda-feira, 2 de dezembro, consta a frase: “(e se diz preocupado), sobretudo, pela sinalização expansionista que o anúncio trouxe, de que o governo não está preocupado em cortar".
A trajetória fiscal brasileira é ruim. Caminhamos para algo próximo a uma relação dívida sobre PIB de 86%, num aumento de quase 15 pontos percentuais em apenas quatro anos. O juro sobre essa dívida é alto e deve subir em 2025. Nenhum outro país emergente encontra situação semelhante.
Em paralelo, não há, no horizonte tangível, esperança de que o poder Executivo esteja empenhado em reformas estruturais para estabilizar o crescimento da dívida pública.
Apesar de a realidade objetiva oferecer adversidades de solução complexa, entendo que a situação atual dos mercados brasileiros decorre mais de uma questão de percepção do que propriamente dos fundamentos materiais. Isso não significa, sob nenhum hipótese, de que o problema seja pouco grave. Reitero: a situação é ruim.
O governo insiste em não reconhecer a gravidade dos fatos, com ao menos parte dele vivendo seu momento de negacionismo da ciência (no caso, econômica). Também não podemos subestimar o quanto o problema da percepção influencia a própria realidade, numa aplicação prática da teoria da reflexividade de George Soros.
Com a divulgação do pacote fiscal brasileiro na última semana, algo se perdeu. Não significa necessariamente que estejamos caminhando para a explosão em 2025. O mais provável até é que não estejamos. Como lembrou aquele jovem com algum potencial em finanças, chamado André Esteves, no evento de 15 anos da Empiricus: a maior probabilidade é de que o governo cumpra sua meta fiscal em 2025.
A esta altura, seria ingenuidade acreditar em real consolidação fiscal brasileira com as regras atuais. Também nutriríamos falsas esperanças de que o arcabouço fiscal possa sobreviver para além de 2026. Mas, com as informações disponíveis até agora, a consistência do framework fiscal parece resistir pelos próximos dois anos. E o ministro Haddad tem sido taxativo ao dizer que, se precisar, ele volta à planilha e propõe novos cortes, assim como Ceron havia feito na semana passada em reunião fechada. Descartamos o ajuste estrutural, mas existe algum compromisso real com a preservação do arcabouço até 2026. Então, com o novo governo eleito, mesmo que seja o velho, seremos forçados a uma real e estrutural discussão sobre nossa política fiscal.
Já a preocupação com a isenção do imposto de renda até R$ 5 mil oferece nuances que requerem maior profundidade de análise.
É correto dizer que essa discussão é inapropriada para o momento, quando precisávamos de uma sinalização clara e inequívoca de todo o governo, incluindo sua ala política, da necessidade de corte de gastos. Misturar nesse pacote, que deveria se focar no corte de gastos, a reforma do imposto de renda foi um tiro no próprio pé.
Também é verdade que a boleta pode ser mais salgada do que os cálculos do governo supõem e que o tamanho da isenção é descabido — cerca de 92% das famílias brasileiras estará isenta da cobrança de imposto de renda. Não precisa de muita genialidade para perceber o exagero.
Há atenuantes, contudo. Embora legítimo, o risco de aprovarmos somente a parte da isenção sem seu devido financiamento parece baixo a esta altura, dadas as manifestações de Rodrigo Pacheco e Arthur Lira na tarde de sexta-feira. A discussão será tratada de forma apartada ao pacote fiscal, num debate a ser feito (se for feito) ao longo de 2025.
Também é pertinente dizer que há certa racionalidade econômica em aumentar a faixa de isenção de IR ao mesmo tempo em que se estabelece o imposto mínimo sobre quem ganha mais de R$ 50 mil. De novo, para evitar interpretações incorretas: os R$ 5 mil são exagerados e deveríamos tratar de maneira isolada a discussão da reforma do imposto sobre a renda, incluindo a necessária redução do imposto corporativo caso formos cobrar imposto sobre dividendo. Mas existem hoje dois grandes problemas que são, ao menos parcialmente, atacados com a proposta do imposto mínimo: o excesso de Pejotização brasileira, que tem relação com justiça tributária, e o volume absurdo de rendimentos milionários advindos de carteiras de títulos isentos.
Não consigo contar com minhas duas mãos o tanto de advogado e profissional liberal que recebe R$ 5 mil de salário e R$ 200 mil por mês de dividendo. É rico e praticamente não paga imposto. De maneira semelhante, há os investidores do ultra high net worth com carteiras multimilionárias de títulos isentos que praticamente não pagam tributos. Se olharmos com honestidade intelectual, será fácil perceber o quanto isso contribui para a regressividade tributária.
Permito-me aqui um excerto do livro “O país dos privilégios”, de Bruno Carazza: “o objetivo deste trabalho não é condenar publicamente aqueles que desfrutam dos privilégios aqui retratados. Seres humanos se movem por incentivos, e o fato de o arcabouço legal, judicial ou administrativo oferecer a determinados indivíduos vantagens especiais não disponíveis aos demais cidadãos não necessariamente significa falha de caráter ou ausência de escrúpulos. (…) Pretende-se, pelo contrário, convidar cada leitor a refletir sobre seus próprios privilégios a fim de (sempre vale ser otimista) questionar o sistema que multiplica esse tipo de benesses e as distribui de forma ineficiente. (…) Não será pelo fato de eu próprio me beneficiar de muitos dos privilégios descritos neste livro que deixarei de questionar sua existência e as distorções econômicas e sociais que eles provocam. Assim, convido você também a lê-lo com uma postura desarmada, ciente de que teremos discordâncias.”
A síntese, portanto, é de que, embora o pacote seja insuficiente para endereçar a sustentabilidade da dívida pública, ofereça uma economia inferior aos R$ 70 bilhões calculados pelo governo em dois anos, tenha sido comunicado de forma muito atrapalhada e misture inapropriadamente uma discussão de imposto de renda no meio de um plano de corte de gastos, ele, muito possivelmente, permite a consistência do arcabouço fiscal por dois anos. Boa parte das medidas vai na direção correta. Não se trata de um abandono definitivo da responsabilidade fiscal, sobretudo porque a discussão do IR deve ficar para 2025, de maneira isolada e com o devido escrutínio.
Em paralelo, há de se observar que a nomeação de Nilton David para a diretoria de política monetária do BC é uma boa notícia. Representa um nome técnico, ortodoxo e de mercado, afastando a hipótese de se “dobrar a aposta” na maluquice.
O maior problema, no meu entendimento, é que perdemos por completo a credibilidade da política econômica brasileira. Todos estão pessimistas e estamos literalmente caminhando numa tábua estreita sobre o abismo. Há risco real de se despertar uma espiral negativa. Dólar sobe, expectativas de inflação também, Copom sobe o juro, governo reage para conter a desaceleração da economia, entramos em dominância fiscal. Ainda não estamos lá, mas precisamos urgentemente de um choque de realidade. A utopia brasileira pode rapidamente se transformar em distopia.
*Felipe Miranda é fundador da Empiricus, sócio do BTG Pactual e autor dos livros “O Fim do Brasil”, “Princípios do Estrategista” e “O Filho Rico”.