É impossível pensar o combate à fome no Brasil sem a agricultura familiar. Boa parte de tudo o que chega às nossas mesas vem das roças e fazendas desses pequenos produtores. São frutas, legumes, verduras, milho, mandioca, batata, feijão, ovos, leite, suínos, aves... alimentos frescos e nutritivos, produzidos, frequentemente, em sintonia com a natureza — mesmo em contextos mais modernizados.
Assim, a agricultura familiar, além de garantir a soberania alimentar nacional, fortalece as economias de suas regiões e, por ser local e diversificada, promove a produção e distribuição de alimentos frescos e saudáveis em áreas mais vulneráveis. Protege ainda o meio ambiente e preserva as tradições culturais, ao incluir povos indígenas e quilombolas, entre outras comunidades nativas. Um instrumento poderoso rumo a um Brasil bem nutrido, inclusivo e sustentável.
Pelas imagens na tevê, com monoculturas a perder de vista e máquinas ultramodernas, tem-se a impressão de que o campo é do agronegócio. Só que não.
Embora ocupe 23% das terras das terras agropecuárias, a agricultura familiar concentra 76,5% das propriedades rurais. Em 3,9 milhões das 5,1 milhões de unidades produtivas, espalhadas Brasil afora, a lida com a lavoura e os animais cabe a famílias, geralmente, em uma tradição passada entre gerações — e cujos rendimentos anuais somam, no máximo, R$ 500 mil.
Outro exemplo de sua potência? Emprega quase 70% da força de trabalho do setor agrário e responde por 23% do valor bruto da produção agropecuária — cujo volume financeiro total deve fechar 2024 em R$ 1,142 trilhão.
Se os produtores familiares brasileiros fossem um país, seriam o oitavo maior produtor de alimentos do mundo, à frente do Japão, Alemanha e Canadá.
Mas, em mais uma das tantas desigualdades nacionais, apesar da importância da agricultura familiar, para a economia e a segurança alimentar do país, nem sempre a comida chega ao prato de quem a produz. Seis em cada dez moradores das áreas rurais (63,8%), em maior ou menor grau, não se alimentam de forma adequada.
Os dados são da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), a partir de entrevistas com 35 mil pessoas, em 2022, mostra ainda: 18,6% do habitantes do campo vivem o estágio mais grave de insegurança alimentar. Não têm o que comer hoje e não sabem quando farão a próxima refeição.
"Ao mesmo tempo que os agricultores familiares representam um potencial de alívio para a insegurança alimentar no país, eles são público alvo das ações de combate à fome", diz Maria Siqueira, diretora do Pacto Contra a Fome, em conversa com o NeoFeed.
Historicamente, os entraves ao pleno desenvolvimento da agricultura familiar são dois: a falta de assistência técnica e a dificuldade de acesso ao crédito agrícola.
A literatura internacional mostra: com a capacitação dos trabalhadores rurais, a produtividade das lavouras, a qualidade dos alimentos e a renda dos agricultores aumentam. Mas apenas 18% deles contam com esse tipo de orientação.
Com conhecimento técnico, inclusive, a transição para sistemas agroecológicos fica não apenas mais fácil com ganha celeridade.
E o trabalho nem seria tão complicado. O cultivo praticado no Brasil por esses produtores é facilmente adaptável aos modelos sustentáveis. A maioria, exatos 67%, não usa insumos industriais no manejo das plantações.
Acesso ao crédito
Os desafios impostos pela agricultura familiar aos formuladores de políticas públicas, como se vê, são enormes, mas, aos poucos, o Brasil parece retomar os eixos. Criado em 1995, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) serve de paradigma.
Depois de aumentos sucessivos nos juros, ao longo dos últimos anos, o Plano Safra 2024/25, uma das principais políticas do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), facilitou o acesso ao crédito, ao reduzir as taxas dos empréstimos. Hoje, elas variam de 0,5% a 6% — a título de comparação, no período 2021/22, iam de 5% a 6%.
Anunciado em julho de 2024, o novo programa procura incentivar a produção orgânica, agroecológica e de alimentos da sociobiodiversidade. Para quem cultiva arroz orgânico, sem agrotóxicos e adubos químicos, por exemplo, os juros são de 2%. Para os agricultores do grão convencional, 3%.
Levantamento do MDA, divulgado em novembro, mostra: nos quatro primeiros meses do Plano Safra 2024/2025, dos R$ 76 bilhões disponibilizados pelo Pronaf, a agricultura familiar acessou cerca de R$ 29,5 bilhões — aumento de 4% em relação ao mesmo período da safra anterior.
No último plano, foram celebrados 1,7 milhão de contratos. São 18% a mais em número de operações e 12%, em volume contratado. É, sem dúvida, um avanço, mas ainda muito longe do ideal.
"As evidências têm apontado que esse é o caminho", avalia a diretora do Pacto Contra a Fome. "O que não significa que não tenhamos ainda grandes desafios que precisam ser perseguidos." Maria se refere, por exemplo, às profundas diferenças entre as concessões de créditos, quando analisadas individualmente as regiões do país.
O estudo Agricultura Familiar Brasileira: Desigualdades no Acesso ao Crédito, apresentado em 2023, pela ONG Climate Policy Initiative, em parceria com a PUC-Rio, é revelador do longo caminho ainda a ser percorrido: apenas 15% dos agricultores familiares obtêm crédito. E os contratos do Sul do país têm um valor médio por hectare 18 vezes maior que do Norte, tradicionalmente mais pobre —R$ 1,451 mil contra R$ 83.
Por isso, em todas as áreas de atuação, não só na agricultura familiar, uma das premissas do Pacto Contra a Fome é a incentivar a formulação de políticas públicas baseadas em evidências — em ajudar o governo federal na coleta e interpretação de dados, como insiste a economista e empresária Geyze Diniz, idealizadora, cofundadora e presidente do conselho de administração do movimento, desde o lançamento da coalização, em abril de 2023.
Afinal, é impossível transformar uma realidade de forma estruturante sem conhecê-la a fundo.
Dois Brasis
Outra aposta dos estudiosos para combinar a promoção da agricultura familiar com o combate à fome é a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Lançado em 2003, o projeto foi praticamente abandonado nos últimos anos.
Por meio do PAA, o governo federal compra os alimentos vindos da agricultura familiar e os doa para projetos de assistência a pessoas em situação de insegurança alimentar. Para os agricultores, é uma reserva de mercado, a garantia de que as suas produções serão integradas à cadeia de consumo.
Como em várias esferas da vida social e econômica brasileira, também no campo é possível constatar a existência de dois Brasis.
De um lado, a agropecuária de commodities, aquela que passa na televisão — dinâmica, com a cadeia produtiva bem estruturada, que exporta e produz receita. Do outro, milhões de produtores familiares, a quem cabe colocar comida em nosso pratos, mas com poucos recursos; muitos passando fome.
O direito básico à alimentação de todos os brasileiros só estará de fato garantido com o fim das discrepâncias entre essas duas forças. Ambas importantíssimas para o desenvolvimento do país e a construção de um futuro mais farto e justo.