O oncologista Drauzio Varella fez e faz mais pela saúde no Brasil do que se poderia imaginar. Ao longo dos últimos 25 anos, seus quadros no programa Fantástico alertam para a importância da prevenção e tratamento precoce das doenças mais prevalentes no país e da necessidade de políticas públicas eficientes.
Os quinze livros que escreveu, a partir de sua experiência profissional, são consumidos por especialistas da área, mas também por leigos. Com o “doutor Drauzio”, como é carinhosamente chamado, os brasileiros aprendem um pouco sobre medicina e, mais importante, a prestar atenção à própria saúde.
Drauzio é um contador de histórias. Histórias reais de pacientes reais, sob o olhar da empatia, do respeito e da delicadeza — o que define sua prática médica. Mas lhe foge à compreensão o termo “medicina humanizada”.
“Na verdade, o que a medicina ensina para o médico é prestar atenção no outro. Ele tem de estar atento ao outro”, diz ao NeoFeed. “Você pode ter um médico altamente competente, que conhece as técnicas, a teoria toda, mas não quer dizer que seja um bom profissional, porque a medicina existe para quê? Qual é a finalidade? Serve para aliviar o sofrimento humano.”
Aos 82 anos, Drauzio é um curioso. Em abril, lançou O sentido das águas: Histórias do rio Negro, livro sobre suas investigações em torno do potencial farmacológico das plantas do grande afluente do Amazonas. A narrativa, bastante pessoal, é resultado de mais de cem viagens à região, nos últimos 33 anos.
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“Nossa pesquisa continua a ser desenvolvida. Não tem fim. É preciso coletar plantas, trazer, separar cascas, folhas e frutos e, depois, moer, preparar extratos e testar em sistemas experimentais”, conta.
Até o momento, com sua equipe, ele já catalogou mais de 2,5 mil extratos. A extratoteca da Universidade Paulista (Unip) é a maior não só do rio Negro, como de toda a floresta amazônica.
“Terminar esse livro me deu um pouco mais de tranquilidade. O ofício de escrever faz a gente ficar com uma obrigação pessoal que não tem fim”, conta. “A gente sai com um amigo para tomar um café, uma cerveja, mas sente que está cabulando a aula, que devia estar em casa escrevendo mais um capítulo.”
Agora então o médico pode se dedicar com mais serenidade à sua próxima missão: um documentário sobre o poder e a importância dos agentes de saúde, cujas filmagens começam agora em agosto.
Acompanhe a seguir os principais trechos da conversa do médico com o NeoFeed.
Por que falar sobre os agentes de saúde?
Estou firmemente convencido de que o único caminho para a saúde pública no Brasil é pela atenção primária à saúde. Nós não vamos ter dinheiro para tratar a crescente multidão de pessoas que passa dos 60 anos em más condições de saúde. Metade dela chega com pressão alta; o número de casos de diabetes é enorme, certamente passa dos 20 milhões de doentes… A única solução tanto para o SUS quanto para a saúde suplementar é investir na prevenção. No caso do SUS [Sistema Único de Saúde], temos o programa Saúde da Família, um dos melhores do mundo nessa área. Os brasileiros não conhecem, mas as organizações internacionais reconhecem seu valor.
Como o programa funciona na prática?
Em geral, são quatro a seis agentes comunitários por equipe. Cada um é responsável por cem famílias e tem de visitar todas uma vez por mês. Hoje, o programa cobre dois terços dos brasileiros. Não precisa chegar a cem por cento — nem todos necessitam dessa atenção porque podem pagar. Esses agentes estão na linha de frente, são os personagens mais importantes da saúde pública. A gente fala de assistência médica como se o médico fosse o mais importante. Não é.
O agente está ali, no corpo a corpo…
Exato, é um membro da comunidade que visita as casas, conversa com as pessoas. Se bem treinado, pode mudar o curso da saúde pública no Brasil. O sistema de saúde brasileiro tem várias entradas e não pode — tem de ser única e através da estratégia de Saúde da Família.
"A gente fala de assistência médica como se o médico fosse o mais importante. Não é"
E onde você entra?
Pedi ao Ministério da Saúde para dar aula para os agentes comunitários. É um trabalho voluntário, sem implicação financeira nenhuma. Vamos gravar um documentário sobre o papel do agente comunitário de saúde. Isso implica ir para lugares diferentes do interiorzão do Brasil. Queremos mostrar quem é esse personagem, porque ninguém sabe no Brasil o que é e nem para que serve o Saúde da Família.
Você está envolvido com a aids desde a chegada da doença no Brasil. Como era lidar com os pacientes naquela época?
Eu era o chefe do serviço de imunologia do Hospital do Câncer e comecei a receber os casos do sarcoma de Kaposi [câncer oportunista comum da infecção pelo HIV]. Fui para os Estados Unidos por três meses para ter contato com casos da nova doença. Quando voltei, era o único oncologista com uma experiência de perto. E comecei a receber todos os doentes de São Paulo e até de outras partes do país.
Não havia muito a se fazer por eles, não é?
Pouquíssima coisa. O que a gente tinha de drogas para tratamento? Primeiro, veio o AZT, depois DDI e DDC, que tinham impacto marginal; o AZT é usado até hoje, junto com outras drogas, mas, na época, sua função era como monoterapia, com resultados bem precários.
"É incompatível uma medicina que não seja humanizada com a prática. Na verdade, o que a medicina ensina para o médico é prestar atenção no outro"
O que determinou sua decisão de se dedicar à medicina social?
Fui da primeira turma da USP [Universidade de São Paulo] que fez residência em medicina preventiva e saúde pública. Quando me formei, a secretaria de saúde de São Paulo tinha criado a carreira de sanitarista e eu me entusiasmei muito. Mas pagavam um salário bem pequeno, eu tinha me casado e esse valor correspondia apenas ao aluguel do meu apartamento — não cobria sequer o condomínio. Aí, fui convidado para ocupar no Hospital do Servidor Público a cadeira de moléstias infecciosas. Fiquei dois ou três anos e fui para o Hospital do Câncer. Lá, interessei-me pela oncologia, mas fiquei com essa coisa do sanitarista frustrado.
Seu livro Por um fio, ao falar de pacientes oncológicos terminais, passa a ideia de que você está sempre tentando romper o abismo entre médicos e pacientes. É isso o que definem como “medicina humanizada”?
Eu tenho um problema com essa expressão. É incompatível uma medicina que não seja humanizada com a prática. Na verdade, o que a medicina ensina para o médico é prestar atenção no outro. Ele tem de estar atento ao outro. Você pode ter um médico altamente competente, que conhece as técnicas, a teoria toda, mas não quer dizer que seja um bom profissional, porque a medicina existe para quê? Qual é a finalidade? Serve para aliviar o sofrimento humano.
É uma bela síntese…
A gente cura poucas doenças, na verdade. O médico serve para você aliviar o sofrimento do outro. Para isso, tem de saber quem é esse outro, o que ele quer, o que espera da vida, o que faz, como é o ambiente em que ele vive. Qual é a crítica que mais se ouve dos pacientes? “Eu fui lá, o médico ficou de olho no computador e não olhou na minha cara.” A medicina é uma profissão que você faz com as mãos.
Como assim?
Se você não toca no paciente, não examina, não completa o ato médico. Dizer para ele tomar ou trocar um remédio talvez resolva o problema, mas a pessoa não vai se sentir atendida. Se ele examina e, por mais superficial que seja, vai ser diferente.
"Temos de aprender a lidar com a IA. Está cheio de vídeos que imitam a minha voz para vender remédios falsos."
Você insiste muito na questão da saúde mental. O que mais o preocupa hoje?
Como é que vivíamos no passado? Eram famílias grandes, as pessoas viviam próximas umas das outras. Nós somos animais grupais, se não fôssemos, não teríamos sobrevivido. Hoje, vivemos isolados uns dos outros em grandes cidades. A vida mudou muito. Vivemos em uma condição que jamais foi experimentada na história da humanidade: você mora num apartamento, com todo conforto, para quem tem esse privilégio, claro, mas fica separado, sozinho. Ao mesmo tempo, o trabalho tomou conta das nossas vidas.
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Como a tecnologia interfere nesse processo?
A tecnologia veio para nos tornar mais eficientes, claro. Mas não veio para nos dar mais tempo livre. Ao contrário, veio para nos roubar mais tempo. E passamos a viver sozinhos, longe das pessoas das quais a gente gosta.
A inteligência artificial te preocupa?
Sim e não. A IA vai ajudar muito a medicina, vai evitar que o profissional faça tanta besteira, tanta coisa errada. Por outro lado, tem a parte ruim, que é o que estamos vendo nas redes sociais hoje. Temos de aprender a lidar com a IA. Está cheio de vídeos que imitam a minha voz para vender remédios falsos.
Você pensa em se aposentar?
Vou me aposentar uma hora — quando eu morrer ou ficar numa condição física que não me permita mais trabalhar e estar aqui tocando a vida para frente. Aí, vou ter a eternidade para descansar, não é?