O cacique Ropni, aportuguesado para Raoni, de 88 anos, é uma incoerência curiosa no mundo digital do século 21. Nos últimos anos, o pouco que sabia de português foi deixado de lado e as redes sociais são algo distante e que não lhe interessa. Em meio século de militância, poderia ter feito carreira política ou aceitado propostas de mineradoras e seria hoje um homem rico.
Mesmo assim, é a autoridade indígena brasileira mais conhecida e respeitada no mundo. Raoni tem em sua trajetória contatos com reis, rainhas, primeiros-ministros e presidentes, principalmente da Europa, sempre em busca de apoio à defesa das terras dos povos originários. Isso aconteceu, em especial, em 1989, quando visitou 17 países com o cantor inglês Sting, no esforço pela demarcação das terras dos Mētyktire-Mẽbêngôkres, também conhecidos como Kayapós e Txukarramães.
E, se preciso, mesmo com a idade avançada, ele deixa seu refúgio, como fez em janeiro de 2023, para subir a rampa do Planalto, na posse do presidente Lula. Com seu icônico batoque de madeira que usa no lábio inferior, tornou-se uma figura imponente, de presença marcante por onde passa. Carismático e autêntico, é dono de autoconfiança, orgulho e ambição inabaláveis que o levaram a se tornar intermediário entre sua gente e os brancos.
Tudo que viveu, contado sob seu ponto de vista, poderia ter se perdido não fosse seus netos e uma equipe de acadêmicos que colheram, em 2023 e 2024, dezenas de depoimentos em sua língua nativa, os traduziram e editaram. O resultado é um documento histórico em forma de livro Raoni, a biografia do cacique, que chega às livrarias em julho. O relato foi encomendado pela editora Companhia das Letras à Fundação Raoni e levou anos para ficar pronto.
Suas memórias permitem conhecer a cultura, a tradição e a história dos povos originários brasileiros e entender por que precisam tanto da natureza para sobreviver. E, nesse sentido, ele se mostrou resistente, resiliente e incansável nos últimos 72 anos, desde que viu um branco pela primeira vez, no início dos anos 1950.
Em seu contato inicial com o presidente da Funai, por exemplo, ele deu uma aula sobre a gente da floresta e disse, como relembra no livro: “A partir de agora, a Funai deve estar do nosso lado, os fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, esses serão sempre nossos inimigos”.
Raoni nasceu em 1937, na região do Kapôt, no cerrado, em meio à floresta amazônica, na bacia do rio Xingu, norte do Mato Grosso. Alguns anos depois de se aproximar dos brancos, foi trabalhar com os irmãos indigenistas Villas Bôas no Parque Nacional do Xingu. Ainda jovem, começou a se destacar como liderança, tanto dentro de seu próprio povo quanto na mediação com o mundo devastador dos brancos, ávidos por suas terras.
Em março de 1984, conta ele, liderou um grupo de guerreiros Mẽbêngôkres que interditou a rodovia BR-080, que cortava suas terras, tomou a balsa que fazia a travessia do Xingu e sequestrou funcionários da Funai. O protesto durou mais de 40 dias e reivindicava a expulsão dos brancos invasores e o estabelecimento de uma faixa de proteção ao longo da rodovia. Como resultado, o presidente da Funai foi demitido e a Terra Indígena (TI) Capoto/Jarina foi reconhecida pelo governo federal.
A luta seguinte se deu em 1988, quando ele e os caciques Teseya Panará e Tuto Pombo Kayapó ocuparam o auditório da liderança do PMDB, em Brasília, durante as negociações na preparação do capítulo "Dos índios" na Constituinte. Fizeram isso porque, na sessão inaugural da Constituinte, Raoni e os outros chefes foram barrados na entrada do Congresso Nacional.
Brando e Sting
A trajetória do cacique ganhou destaque internacional em 1978, com o documentário Raoni, de Jean Pierre Dutilleux e Luiz Carlos Saldanha, narrado por Marlon Brando (disponível no YouTube) e indicado ao Oscar. Mas a guinada veio a partir do encontro com Sting, no Xingu, em 1987.
O cacique relembra a conversa do roqueiro com ele: “Tudo bem, Raoni, eu já entendi. Mas eu não vou ajudar você com meu próprio dinheiro. Vou te ajudar a fazer uma campanha e assim vamos arrecadar os recursos necessários para a demarcação”.
Os dois, então, participaram de uma coletiva durante a turnê Human Rights Now!, da Anistia Internacional, em São Paulo. A repercussão se mostrou tão grande que o cantor, sua esposa Trudie Styler e o cineasta Jean-Pierre Dutilleux fundaram a Rainforest Foundation para apoiar os projetos de Raoni, incluindo a demarcação de terras dos caiapós, ameaçadas por invasões de grileiros e garimpeiros.
Durante todo o ano de 1989, foi feita uma campanha internacional liderada por Raoni e Sting, que deu visibilidade global à causa indígena e ambiental brasileira. Até que conseguiram a homologação, em 1993, da maior reserva de floresta tropical do planeta, entre o Mato Grosso e o Pará. Além disso, o grupo dos sete países mais ricos liberou fundos para a demarcação de terras indígenas no Brasil.
A mobilização teve outro resultado significativo: despertou a consciência internacional sobre a necessidade de preservar a Amazônia e seus povos originários. Tanto que líderes como François Mitterrand, Jacques Chirac, rei Juan Carlos, príncipe Charles e papa João Paulo II manifestaram apoio à causa liderada por Raoni. Em suas memórias, com simplicidade, ele lembra a experiência de só ver água pela janela do avião, que parecia parado no ar, quando cruzou o Atlântico para chegar a Paris pela primeira vez.
Nas duas décadas seguintes, Raoni se posicionou como protagonista de campanhas internacionais, visitou Japão, França, Bélgica e Canadá, de modo a manter viva a luta contra ameaças à Amazônia, como o projeto da Usina de Belo Monte. Em 2010, ele apresentou o plano de criação de um instituto em seu nome, com hospital, escolas e centro de pesquisa ambiental. Em 2011, foi homenageado com o título de cidadão honorário de Paris.
Guerra e paz
Algumas passagens do livro são surpreendentes, como quando Raoni aprende a usar arma de fogo e percebe, por exemplo, a facilidade que tem nas mãos para matar macacos como alimento. Em suas falas, ele traz, sim, um discurso de paz, mas alerta que, para vivermos em comunhão, é preciso “que nossas terras sejam demarcadas, que as florestas e os rios sejam preservados, e isso não se conquista facilmente”.
Por tudo que passou, aprendeu que nada cai do céu. Ao contrário. Segundo os netos, “o vovô nos ensina que somos um povo guerreiro que tem o costume de lutar para se defender e para ser ouvido”.
E hoje ele lhes diz: “Façam como eu, partam para sua missão, cumpram a sua missão e depois voltem para casa. Nunca se esqueçam da nossa origem”.
O projeto da biografia teve coordenação do antropólogo Fernando Niemeyer. Para ele, “a publicação deste livro é também uma resposta à dívida que a sociedade brasileira tem com os povos originários do nosso país, refletida no enorme abismo existente entre a riqueza do pensamento indígena e o número ainda ínfimo de publicações de autores indígenas. Autobiografias indígenas são ainda mais raras no Brasil”.
Raoni saiu vencedor de sua luta, ao menos por enquanto. Em julho de 2023, o antigo sonho da demarcação da sua região natal começou a se tornar realidade. O território sagrado dos Mētyktire foi cartografado pelo governo federal, depois de décadas de reivindicações e protestos. E ele continua a postos, pronto para lutar de novo, se preciso for.