Quase 20 anos após seu surgimento, as criptomoedas começam, enfim, a se tornar um meio de pagamento eficiente. Mas, de maneira diferente da imaginada por seu idealizador, que esperava que o bitcoin assumisse esse papel. Na verdade, são as stablecoins que vêm ganhando tração.
Sua principal utilidade tem sido no envio de remessas internacionais, nas quais seu uso reduz o tempo da transação para poucos minutos. O mercado de stablecoins é avaliado em US$ 288 bilhões, considerando todas as emissões já feitas, segundo o CoinGecko.
Desse total, mais de 90% estão atreladas ao dólar, com a predominância das criptomoedas USDT, da Tether, e USDC, da Circle, que juntas somam US$ 235 bilhões. A lógica é parecida com a do mercado de ETFs. Se há demanda, são feitas novas emissões, sempre pareadas ao dólar.
Essa é uma das classes que mais crescem, com aumento de 40% do estoque desde o início do ano. No Brasil, as stablecoins avançam a passos largos. De acordo com a plataforma Biscoint, o volume negociado de tether no Brasil foi de US$ 1,676 bilhão em julho, mais que o triplo do registrado no mesmo período do ano passado e 2,2 vezes o volume de bitcoin negociado no mês.
Itaú e Nubank já oferecem esse tipo de ativo para seus clientes, assim como o BTG Pactual, que também vê oportunidades nessa classe para além da oferta aos clientes. Mas esses grandes players são mais cautelosos.
"Nunca tivemos dúvida de que a tecnologia blockchain, a tokenização e, agora, as stable currencies são infraestruturas que vão transformar o mercado", disse Roberto Sallouti, CEO do BTG Pactual, no 26º Encontro Anual do Santander.
"Estamos, pouco a pouco, nos transformando em um banco digital universal e acredito que nossa agenda passe muito por blockchain, tokenização e stable currencies", complementou Sallouti.
O CEO do BTG, no entanto, pontuou que um fator limitante é a falta de regulamentação desse mercado no Brasil, o que impede o banco de assumir a dianteira desse movimento.
"Não podemos ser um first mover porque somos extremamente regulados. A regulação às vezes nos coloca em posição de desvantagem competitiva. Então, é importante que isso seja regulado rapidamente para que possamos competir em tecnologia, conhecimento e desenvolvimento", disse Sallouti.
A regulação das stablecoins vem sendo discutida no Brasil no âmbito da Lei 14.478/2022, que criou o marco legal dos criptoativos. Para detalhar sua aplicação, o Banco Central abriu uma consulta pública na qual recebeu contribuições de fintechs, associações do setor e bancos. Entre eles, o próprio BTG Pactual.
A expectativa é de que a regulamentação seja publicada ainda neste ano. Charles Aboulafia, CEO da Cainvest, comenta que o mercado de criptomoedas está chegando a um momento de virada, com as grandes instituições financeiras começando a abraçar essa tecnologia.
"As instituições financeiras de primeiro porte, que ainda não tinham aderido a esse mercado, já vinham estudando o setor e contratando pessoas que entendem. No momento em que a regulação fica mais clara, como foi nos Estados Unidos, com a Genius Act, elas recebem o sinal verde. Esse é um mercado muito focado no institucional e está acontecendo agora", diz Aboulafia.
A maior parte das operações com stablecoins no Brasil passa hoje pela estrutura da Cainvest. Com sede nas Ilhas Cayman, o banco se consolidou como prestador de serviços offshore para grandes instituições financeiras, como Itaú e Mizuho.
Nos últimos anos, porém, a instituição tem direcionado cada vez mais sua atuação ao mercado cripto, assumindo o papel de maior formador de mercado institucional do país, responsável por prover liquidez a bancos e corretoras.
Para garantir a segurança e a eficiência nas operações com stablecoins, a Cainvest opera com sistemas de monitoramento que rastreiam todas as transações na blockchain. "O blockchain te entrega tudo, não tem discussão", afirma Aboulafia, destacando a transparência da tecnologia.
Essa mesma transparência, contudo, pode ser uma vantagem e uma desvantagem. Embora permita rastreabilidade completa, também expõe informações comerciais sensíveis que empresas preferem manter confidenciais. "Se eu te mandar hoje 100 USDCs, vou saber se chegou ou não", diz Aboulafia. Essa visibilidade total pode desencorajar empresas que valorizam privacidade em suas transações.
Fintechs lideram inovação
Enquanto bancos tradicionais aguardam regulamentação, fintechs especializadas em pagamentos internacionais têm protagonizado a adoção de stablecoins no Brasil.
A Onda Finance exemplifica essa movimentação: começou operando US$ 300 mil por mês em dezembro de 2024 e hoje processa US$ 100 milhões mensais. "São transferências cross-border de exportação de commodities, importações e remessas financeiras", diz Nildson Alves, CEO da fintech.
O modelo se replica em outras fintechs. A Oz solicitou autorização para atuar como DTVM visando ao segmento de stablecoins, enquanto o Ebanx desenvolve projetos internos similares. A Lumx se posiciona como infraestrutura B2B2B, e a Matera relata crescente interesse de grandes players.
"É a nova onda das fintechs. Antigamente, toda empresa de tecnologia tinha que ser uma fintech. Agora, toda fintech vai ser uma empresa de stablecoin", resume Caio Barbosa, da Lumx.
O grande desafio para essas empresas, porém, é a necessidade de presença internacional para viabilizar a conversão das stablecoins em moedas locais no destino - o chamado "off-ramp". Isso exige investimentos significativos em estrutura global e parcerias, criando barreiras de entrada que podem favorecer players já estabelecidos.
Além disso, especialistas alertam que quando grandes bancos decidirem entrar massivamente no mercado - algo que pode acontecer com a regulamentação - poderão alterar drasticamente a dinâmica competitiva, potencialmente marginalizando as fintechs pioneiras que não tiverem conseguido escala suficiente.
Onda mundial
Mesmo com a expansão, as stablecoins representam menos de 8% do valor total de mercado das criptomoedas, dominado por bitcoin e ether, avaliados em US$ 2,24 trilhões e US$ 510 bilhões, respectivamente.
Apesar de ser menor do que bitcoin e ether, o volume negociado pela stablecoins supera o das maiores criptomoedas. O USDT, com maior liquidez, tem registrado volume de negociação próximo de US$ 78 bilhões em 24 horas, de acordo com o CoinGecko, mais que o dobro dos cerca de US$ 34 bilhões negociados em bitcoin.
Dados do Fórum Econômico Mundial indicam que o volume de transferências com stablecoins no ano passado foi de US$ 27,6 trilhões, superando o volume combinado que passou pelas bandeiras Visa e Mastercard. A tendência é que os números sigam crescendo.
Especialistas, porém, alertam para riscos ainda pouco discutidos no mercado. A concentração em poucas moedas (USDT e USDC representam mais de 80% do mercado) cria vulnerabilidades sistêmicas. Além disso, eventos como o colapso da stablecoin Terra USD em 2022 mostram que nem todas as stablecoins mantêm sua paridade com o dólar de forma consistente.
Questões de transparência também preocupam reguladores. Embora a Tether, emissora do USDT, publique relatórios de auditoria, críticos questionam se as reservas são suficientes e adequadamente diversificadas para sustentar todas as moedas em circulação em cenários de stress extremo.
Um dos avanços que devem impulsionar esse mercado foi a recente regulamentação das stablecoins em Hong Kong e, especialmente, nos Estados Unidos, com a aprovação do Genius Act pelo Congresso.
A maior clareza nas regras já tem atraído grandes players, como Citi e Bank of America, que estudam a criação de suas próprias stablecoins para ganho de eficiência em suas operações de tesouraria.
Guilherme Prado, country manager da corretora asiática Bitget no Brasil, afirma que o uso de stablecoins no comércio internacional é uma tendência global, dadas as vantagens em relação ao sistema tradicional do Swift.
"Estamos vendo uma mudança de paradigma, principalmente entre os clientes institucionais, que têm buscado as ferramentas da exchange para realizar remessas em dólar de forma mais rápida e com custos menores", diz Prado.
Para os novos entrantes, o momento é de aumentar a vantagem o mais rápido possível em relação aos bancos que, quando entrarem, poderão mudar todo esse jogo – e, possivelmente, todo o comércio internacional.