Veneza — Um Corpo que Cai, de 1958, é um filme-chave na carreira da americana Kim Novak. E não só porque o thriller psicológico de Alfred Hitchcock a eternizou na história do cinema, como uma amálgama de beleza, sensualidade, frieza e mistério.
Presença garantida nas listas de “melhores filmes de todos os tempos”, Um Corpo que Cai também ajuda a entender por que a estrela abandonou o cinema. Ao redor dos 30 anos, ela deixou Hollywood para trás, para criar cavalos e pintar no Big Sur, região costeira na Califórnia, passando a atuar só esporadicamente.
Embora Novak sonhasse com papéis mais desafiadores, a indústria do cinema insistia em mantê-la como símbolo sexual. Situação não muito diferente da retratada em Um Corpo que Cai, à medida que a obsessão do detetive John “Scottie” Ferguson, para satisfazer a sua fantasia, força a personagem Judy a se transformar em Madeleine — a suposta amada morta.
“Foi incrível o que Um Corpo que Cai fez por mim, mas o filme também foi o motivo pelo qual eu tive de largar tudo. Eu não podia mais sobreviver naquele ambiente”, conta a atriz, aos 92 anos, no documentário Kim Novak’s Vertigo, dirigido por Alexandre O. Philippe.
Ainda sem data de lançamento definida no Brasil, o filme fez a sua première mundial na recém-encerrada 82ª edição do Festival de Cinema de Veneza, que teve cobertura do NeoFeed. E Novak compareceu ao evento italiano, que aproveitou o lançamento do documentário para homenagear a atriz com um Leão de Ouro honorário por sua contribuição artística nas telas.
“O novo filme foi uma oportunidade para juntar todas as peças da minha vida antes da minha partida”, disse Novak, no palco da Sala Grande, o auditório das sessões de gala de Veneza.
“Quando era garota, a minha mãe me ensinou a dizer todos os dias, diante do espelho: ‘Você está no controle da sua vida e mais ninguém’. E essas palavras ficaram comigo”, completou ela, recebendo os aplausos dos mais de mil convidados que lotaram a sala.
Um Corpo que Cai, bastante explorado no documentário, trata de um mal que ressoava muito intimamente com Novak: a “fabricação” de uma mulher. O roteiro obrigou a sua personagem Judy a se deixar moldar pelo detetive Ferguson (vivido por James Stewart), que via em Madeleine (também interpretada por Novak) um ideal feminino, obcecado por sua beleza e elegância.
Ao conhecer Judy, que guarda uma semelhança com Madeleine, embora seja uma versão mais vulgar, o detetive (que sofre de medo de altura) não mede esforços para promover a sua metamorfose na mulher sofisticada por quem se apaixonou.
As imagens de Madeleine com o cabelo loiro preso em um coque e com um tailleur cinza se tornaram icônicas, ao representarem uma beleza sóbria e enigmática.
O terninho cinza até foi motivo de briga entre Hitchcock e Novak, que não queria usar o figurino. Mas o diretor era notoriamente obcecado pela imagem de suas atrizes (muitas vezes dentro e fora das telas), decidindo cada detalhe do guarda-roupa. Com isso, ele acabou exercendo a sua autoridade no set de filmagem e não deu importância ao que a atriz sentia — o que estremeceu a relação da dupla.
“Interpretar Madeleine e Judy foi, de todos os trabalhos que fiz, o que mais me enlouqueceu. E isso se estendeu para a minha vida também. Era como se eu estivesse presa em um daqueles círculos de Hitchcock, que me deixavam tonta”, afirma a atriz, no documentário.
No caso de Novak, havia ainda o agravante de a atriz se sentir um “produto” na meca do cinema, por ter sido “fabricada” por Harry Cohn. O presidente da Columbia Pictures, com reputação de tirânico, foi quem fez Novak (nascida Marilyn Pauline Novak) mudar o nome e pintar o cabelo de loiro, para melhor corresponder à imagem de símbolo sexual.
“Quando deixei Hollywood, eu estava realmente no auge da minha carreira”, conta a atriz, também conhecida pelos filmes Férias de Amor (1955), contracenando com William Holden; O Homem do Braço de Ouro (1955), ao lado de Frank Sinatra; e Beija-me, Idiota (1964), com Dean Martin.
“Como eu ainda era jovem para fazer outros trabalhos, até me senti culpada ao abandonar tudo. Talvez por não ter cumprido o meu destino. Mas tive de entrar no meu modo de sobrevivência, que era a pintura naquele momento”, diz Novak. Ela já fez várias exposições com suas obras, de estilos impressionista e surrealista.
“Hollywood simplesmente engole as pessoas. Eu tinha muito medo de me perder lá pelo que esperavam que você fosse e fizesse”, lembra ela. “E provavelmente a coisa mais importante da minha vida sempre tenha sido manter a noção de quem sou.”