Angela Yvonne Davis tinha 26 anos quando, em 18 de agosto de 1970, seu nome entrou para a lista dos dez foragidos mais procurados pelo FBI. A ativista era acusada de conspiração, sequestro e homicídio, por suposta ligação a um ataque ao Palácio da Justiça do Condado de Marin, na Califórnia.

Assim, ela se transformou em alvo de uma das maiores caçadas policiais da época, acompanhada diariamente pela imprensa durante dois meses. Detida em Nova York, Davis passou um ano e meio presa, até ser inocentada pela Suprema Corte, em um dos julgamentos mais polêmicos da história americana no século 20.

O caso lançou aquela jovem mulher negra, culta e de olhar firme, à notoriedade internacional. E marcou sua vida e sua obra: as prisões se tornariam eixo fundamental de sua reflexão política.

Aos 81 anos, completados em janeiro deste ano, a hoje filósofa se destaca por sua militância incansável pelo abolicionismo penal, os direitos das mulheres e o fim da discriminação racial e social.

Professora emérita da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, ela lança agora no Brasil o instigante Abolição – Política, Práticas, Promessas. Primeiro volume de uma coleção de dois livros, a coletânea reúne ensaios, conversas e entrevistas que mostram a evolução de seu pensamento e seu compromisso inabalável com a libertação coletiva.

São escritos que giram em torno do modelo de prisão ocidental, do complexo industrial prisional e da defesa da abolição de ambos, que ajudam o leitor a “compreender esses processos (de prisão) responsáveis por formas contínuas e sistemáticas de devastação em nossa sociedade”, como escreve Davis.

Responsabilidade comunitária

Embora ainda existam com a justificativa de garantir a segurança pública e de reabilitar quem transgride a lei, a instituição prisional sempre promoveu sua própria permanência, defende Davis. “Espero que haja algum valor contemporâneo nos insights que compartilho aqui”, diz no prefácio.

Cada ensaio reunido representa, afirma a autora, percepções e práticas plenamente colaborativas de seus contemporâneos: “Embora eu conste como autora da maioria dos escritos, jamais reivindicaria responsabilidade total por essas ideias”.

Ao defender o abolicionismo penal, Davis propõe um conjunto de alternativas que visam suprimir o uso das cadeias como mecanismo de punição, de modo a atacar as causas sociais que levam à criminalidade.

A ideia não é simplesmente substituir as prisões por novos tipos de encarceramento, mas criar uma sociedade que não precise delas — promovendo justiça transformativa e responsabilidade comunitária.

Ela sugere investimentos em escolas de qualidade, cuidados com a saúde física e mental universais, moradia digna, acesso a emprego e outros serviços sociais essenciais que previnam ou reduzam a criminalidade. Modelos de justiça que priorizem reparação, reconciliação, reconhecimento de danos e responsabilização.

Hoje, aos 81 anos, Angela Davis é professora emérita na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (Imagem: wikimedia.org/Oregon State University)

Acusada de cumplicidade em um assassinato, em 1970, Angela Davis fugiu por dois meses até ser capturada pelo FBI (Imagem: Reprodução)

A prisão da ativista desencadeou um movimento global de solidariedade (Imagem: Reprodução de foto de Nick Dewolf)

Com 352 páginas, o livro custa R$ 89,90 (Imagem: Companhia das Letras)

Desde os protestos de 2020, em resposta aos assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e tantos outros cometidos pela polícia americana, a ativista diz presenciar o despertar de uma nova consciência coletiva sobre a dura onipresença das instituições carcerárias e a capacidade irrisória de se imaginar outras formas de garantir a saúde e a segurança públicas.

Para a ativista, “apesar de forças políticas regressivas persistirem em suas tentativas de expurgar as evidências dessa consciência emergente, as possibilidades políticas anunciadas por estratégias tidas como abolicionistas das prisões (em oposição às reformistas) são cada vez mais reconhecidas — às vezes, até mesmo no interior do discurso convencional”.

Mesmo assim, ela não acredita que estejamos no caminho para a mudança das prisões e das estruturas de policiamento. Davis vê o encarceramento de imigrantes, por exemplo, não apenas como uma política de controle de fronteira, mas como o reflexo de valores mais amplos de exclusão e de negação dos direitos humanos e civis.

A "doçura" de seus sonhos

No final da década de 1990, ela estabeleceu a conexão entre o encarceramento penal e a escravidão. E a luta contra as duas instituições tem raízes na transformação dos mecanismos sociais que continuam a mandar para a cadeia as populações negras e marginalizadas — não só nos Estados Unidos, como em grande parte do mundo.

“O envolvimento abolicionista com as instituições carcerárias de nosso planeta nos leva a reconhecer que não podemos parar com os apelos pela abolição de prisões, cadeias, detenções de imigrantes, estruturas de policiamento e outras instituições de encarceramento”, escreve.

Assim, Abolição repensa os significados de instituições caras tão à contemporaneidade, como a própria democracia.

Em seus doze longos textos, a autora não apresenta respostas definitivas, mas oferece reflexões que dialogam com movimentos sociais e intelectuais engajados em romper não apenas com as estruturas prisionais, mas com o racismo e o patriarcado.

É como resume o jornal americano The New York Times: "Os argumentos de Davis em prol da justiça são formidáveis… O poder de suas percepções históricas e a doçura de seu sonho não podem ser negados".