O varejo físico nos Estados Unidos já tinha um problema com nome e sobrenome: Jeff Bezos, o fundador da gigante do comércio eletrônico Amazon.
Mas aí veio o coronavírus. E tal qual um castelo de cartas que desmorona, o fechamento das portas de muitas lojas por conta do isolamento social fez com que a situação, que já era delicada, ficasse dramática.
Em 7 de maio, a luxuosa rede de lojas de departamentos Neinam Marcus se tornou a primeira grande varejista a pedir concordata, com dívidas de US$ 4 bilhões.
Um dia após o pedido de proteção à falência, foi a vez da JC Penney trilhar o mesmo caminho. A rede de 188 anos sucumbiu ao fechamento de suas 800 lojas nos EUA e a dívidas de US$ 1 bilhão.
Mas mesmo entre aquelas que ainda resistem e não precisaram recorrer à recuperação judicial, a situação não é fácil. A Nordstrom, por exemplo, vai encerrar as atividades de 16 lojas.
A Macy's, maior varejista americana com 775 lojas, está fazendo um verdadeiro malabarismo para evitar a falência. Em abril, cogitou tomar US$ 5 bilhões em empréstimos, colocando parte de seu inventário como garantia. Vale lembrar que, em janeiro deste ano, a empresa já tinha de lidar com uma dívida de US$ 3,5 bilhões.
“As lojas de departamento e varejistas já enfrentavam grandes desafios, como a queda do movimento em decorrência do e-commerce, a escalada irreal do setor imobiliário e o custo geral das operações”, afirma Vicki Howard, professora de história na Universidade de Essex, em entrevista ao NeoFeed.
Vicki é autora do livro "From Main Street to Mall: The Rise and Fall of the American Department Store", sem tradução para o português, considerado um dos primeiros grandes estudos do setor, recebendo, inclusive, o prêmio Hagley, na categoria Negócios Históricos.
Em entrevista ao NeoFeed, a professora, radicada na Inglaterra, analisa a crise pela qual passa o setor de lojas de departamentos, comenta o processo de transformação desse mercado e mostra alguns modelos mais resilientes, como o do Walmart e da Target. "Essas duas empresas têm resistido bem a essa crise do novo coronavírus e à crise do varejo em geral." Acompanhe:
Você acredita que o varejo americano é diferente do de outros países?
Depois que esse livro foi publicado, eu me mudei para a Inglaterra. Tive a oportunidade de continuar minhas pesquisas, mas senti na pele como o varejo americano é particular. De uma forma geral, acredito que o varejo moderno é uma evolução das lojas de departamento. Com raízes na França e na Inglaterra, no século 19, elas só chegaram aos EUA na década de 1870 e 1880. Em todos os países, as lojas de departamento se desenvolvem de uma maneira semelhante, por conta das regras do capitalismo, mas percebo claramente que a legislação pode moldar um negócio.
De que maneira?
Se você tem determinadas regras trabalhistas, há limites no que pode ser feito e da maneira que pode ser feito. Além disso, também recai sobre o governo decisões sobre taxas e tarifas. Acredito que tudo isso impacta na cultura do consumo, porque afeta a nossa relação com produção e emprego. Consequentemente, afeta nossa relação com o dinheiro. Por fim, o varejo americano sente ainda o peso da indústria automotiva.
O fato de as pessoas terem fácil acesso a carros pode também ditar a cultura de consumo?
Sim, sem dúvida. A indústria automotiva foi promovida por políticas governamentais e incorporada na sociedade de uma forma bastante única. A geografia do país gira também em torno disso, a ponto de os tipos e os locais das construções de centros comerciais serem definidos levando essa questão em consideração. O boom dos shoppings tem muito a ver, nos Estados Unidos, com a conveniência dos estacionamentos. Sobretudo porque o transporte público, na maior parte do território americano, não é considerado um modelo.
"O formato americano, aquele que foi desenvolvido por e para a classe média branca, está morrendo há muito tempo, porque ele não soube se reinventar"
E como se deu o processo de transformação e queda desse modelo?
Depois dos Estados Unidos, o modelo de shoppings ganhou tração na América Latina e outras regiões. No Japão, as lojas de departamento ainda são muito fortes, mas elas estão conectadas a estações de ônibus, trens ou metrôs. No Oriente Médio e na China os shoppings se transformaram praticamente em um destino. É outro conceito. O formato americano, aquele que foi desenvolvido por e para a classe média branca, está morrendo há muito tempo, porque ele não soube se reinventar como nesses países que acabei de citar.
Você enxerga uma cadeia modelo que seja, talvez, mais resiliente?
Acredito que o Walmart. No princípio, ele era como uma loja de departamento "comum", mas sempre com preços mais acessíveis, o que atraia outro tipo de clientela. Aos poucos, a rede foi agregando, entre novos produtos, alimentos. Hoje, ele é considerado um supermercado, mas é uma loja onde se vende de tudo um pouco: eletrônicos, produtos de limpeza, de beleza, itens domésticos e etc. Isso o tornou indispensável por outros motivos. E talvez seja um indicativo do formato que resistiria ao 'apocalipse' do varejo. O Target, que foi fundado quase na mesma época, é outro exemplo, mas em proporções menores, porque não tem a dimensão do Walmart. Essas duas empresas têm resistido bem a essa crise do novo coronavírus e à crise do varejo em geral.
É indiscutível que a Covid-19 acelerou, ou pelo menos potencializou, essa decadência do varejo. Acredita que o impacto maior ainda está por vir?
As lojas de departamento e varejistas já enfrentavam grandes desafios, como a queda do movimento em decorrência do e-commerce, a escalada irreal do setor imobiliário e o custo geral das operações. Mas agora estamos falando de estoques abarrotados, que devem "quebrar" uma cadeia inteira. Isso vai certamente impactar a manufatura que, no caso de artigos têxteis, é geralmente terceirizada para países em desenvolvimento. O buraco é mais embaixo e ainda não sabemos sua dimensão.
"Essas duas empresas (Walmart e Target) têm resistido bem a essa crise do novo coronavírus e à crise do varejo em geral"
Você acredita que esses eventos podem mudar a nossa relação com o consumo?
Historicamente, isso sempre aconteceu. A forma como lidamos com as compras dialoga com a realidade. No auge das lojas de departamento, por exemplo, a opção por consumir ali inspirava luxo, atendimento diferenciado e muitos mimos. Era um ambiente feminino, para uma classe que aspirava crescer. Ainda não sei exatamente como será nossa relação com o consumo daqui pra frente, mas ele vai mudar. Porque comprar em lojas de departamento, por exemplo, já não é a mesma coisa.
Será podemos retornar ao comércio de rua, como era no princípio, por uma questão de experiência?
Sei que algumas cidades e até shopping centers tentam resgatar esse espírito, mas acredito ser difícil que qualquer empreitada física resista aos valores dos aluguéis e aos preços mais convidativos praticados online. É preciso ver como o mundo e os negócios vão se ajustar à nova realidade, mas primeiro precisamos saber qual será essa nova realidade.
Você acha que a Amazon e o e-commerce vão acelerar a decadência do varejo físico como o conhecemos?
Sim, desde que as compras online começaram a tomar forma, por volta de 1994, dezenas de milhares de lojistas físicos desapareceram. Tantos shoppings e centros de compras desapareceram que o fenômeno ganhou um termo em inglês: “deadmall” (“shopping morto”, em tradução livre). Mas, embora a Amazon e o e-commerce de uma forma mais ampla tenham colaborado com essa mudança, eles não são os únicos fatores. Nos EUA, pelo menos, as razões são complexas e incluem a mudança no gosto do consumidor, os hábitos de consumo dos mais jovens e o declínio das estruturas dos shopping, que vão envelhecendo.
"A maioria das redes de varejo e grandes lojas de departamento abraçaram o e-commerce, mas não fazem dele seu ponto forte"
A maioria das redes de varejo e grandes lojas de departamento abraçaram o e-commerce, mas não fazem dele seu ponto forte. As lojas de departamento que trabalham com itens em desconto, porém, estão se saindo melhor. O Walmart é um bom exemplo. O e-commerce deles nos EUA cresceu 41% no último trimestre fiscal de 2019. A pandemia ajudou o setor digital crescer ainda mais — e o Walmart, de novo, viu suas vendas subirem 74% durante a crise.
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