Califórnia - Numa carta de dez páginas tornada pública há algumas semanas pela Retail Industry Leaders Association (RILA), da qual fazem parte Best Buy, Walmart, Target e mais de 200 outras varejistas, o clamor por uma competição mais justa no ambiente virtual ganhou força – em Washington e além.

"A tecnologia não é mais uma simples indústria. Ela é parte de todas as indústrias", invocando as palavras da comissária Rebecca Kelly Slaughter, da Federal Trade Commision (FTC), grandes nomes do varejo americano colocaram mais lenha na fogueira que aquece a temperatura do Vale do Silício.

O esforço é para que não aconteça na web o que se viu (e ainda se vê) no comércio físico. Segundo informações da Coresight Reserach, uma organização voltada para a análise de dados relativos ao varejo, 4.810 lojas fecharam em todo território americano apenas nos três primeiros meses de 2019. No ano passado, ainda de acordo com a Coresight, 5.524 lojas encerraram suas operações – uma queda de 30% em relação a 2017, o ano recorde, quando 8.139 endereços comerciais apagaram as luzes.

Embora seja verdade que nem todo o varejo físico não tenha sabido acompanhar as novas demandas dos consumidores, há quem culpe a "voracidade" de preços e mordomias do e-commerce pelo chamado "apocalipse do varejo offline", do qual o grande vilão é a Amazon, avaliada em mais de US$ 980 bilhões e responsável por 38% de todas as vendas online nos EUA, em 2019.

E são justamente essas proporções dantescas que parecem preocupar a RILA. No documento assinado por Brian Dodge, COO da associação, eles destacam uma "assimetria" na competição online, apontando a hegemonia de Google e Amazon na busca por produtos, por exemplo. De acordo com a carta, essas empresas podem influenciar a forma e a ordem que a informação de determinado produto chega até o usuário e, com isso, influenciar a decisão de compra das pessoas.

"A concorrência intensa sempre foi a espinha dorsal da indústria americana. A competição fomenta a inovação e traz ao consumidor preços mais baixos e novos produtos e serviços", diz a carta, que deixa claro que não está falando de uma empresa específica, mas de todo o ecossistema digital.

Nessa seara, porém, não há como se desvencilhar das gigantes tecnológicas do Vale do Silício. Parte do grupo Alphabet, que detém mais de 200 marcas, entre elas o site de vídeos YouTube e o sistema operacional para celulares Android, o Google concentra mais de 88% de todas as buscas online. Junto com suas empresas irmãs, o Google garante ao Alphabet o controle de quase todo tráfico online, seja ele mobile ou desktop. É praticamente impossível que uma pessoa conectada não use pelo menos um dos produtos do grupo, como o Gmail, que conta com 1,5 bilhão de usuários e 20% do mercado. O grupo Alphabet, hoje, vale quase US$ 800 bilhões.

Há quem culpe a "voracidade" de preços e mordomias do e-commerce pelo chamado "apocalipse do varejo offline", do qual o grande vilão é a Amazon

O Facebook, por sua vez, está na casa dos US$ 575 bilhões, e é dono da rede social de imagens Instagram e do aplicativo de mensagens WhatsApp, duas das mais populares redes sociais do mundo. Enquanto o WhatsApp ainda não deixou bem claro sua forma de monetização, o Instagram e o Facebook ganham dinheiro com publicidade.

A Apple não fica atrás. No quesito valor de mercado, aliás, ela está é na frente: vale mais de US$ 935 bilhões. Dona do Shazam, aplicativo de reconhecimento de música, da assistente virtual Siri e da Beats Eletronics, especializada em acessórios para música, a Apple detém o controle de quase 18% do mercado de celulares com o iPhone.

Por isso, o documento endereçado ao Federal Trade Commission, órgão regulamentador do comércio americano, é apenas um eco de queixas que há tempos pairam sobre o Vale do Silício. Há quase uma década o Yelp, um site colaborativo de recomendações e avaliações, denuncia o Google por práticas suspeitas. Para a empresa, o grupo Alphabet manipula os algoritmos para priorizar e valorizar os próprios serviços, tornando a competição virtualmente impossível.

Da mesma forma, as páginas escritas por Dodge citam coisas semelhantes de outras empresas, que se aproveitam da quantidade massiva de dados de usuários para favorecer os próprios interesses. "Uma empresas não precisa ter poder para controlar valores se ela tem poder para controlar, de modo eficiente, o acesso às informações dos valores", pontua a carta.

Todas essas queixas apenas alimentam o endurecimento de leis antitrustes que vem sendo discutidas na capital americana. A senadora Elizabeth Warren, que deve tentar a vaga democrata à corrida pela presidência dos EUA, tem sido uma das mais fortes vozes neste sentido. Ela chegou, inclusive, a colocar um outdoor em São Francisco com os dizeres "Break Up Big Techs" – algo como "acabe com as Big Techs", em tradução livre.

Na proposta da senadora, WhatsApp e Instagram, por exemplo, deveriam voltar a ser empresas independentes, e não mais parte de um grupo. Além disso, ela sugere que exista uma legislação para impedir que proprietários de plataformas avaliadas em mais de US$ 25 bilhões participem do próprio negócio. Caso seja aprovada, essa medida afetaria em cheio a Amazon, que, além do espaço, comercializa os próprios produtos.

O desdobramento dessas discussões levou até Washington DC os executivos das Big Techs. No dia 11 de julho, eles foram questionados sobre o tamanho e o modelo de seus negócios, e alertados sobre a frustrações de outros comerciantes que sentem que não têm espaço para competição.

Refutando a teoria de concentração e formação de cartel, os executivos alegaram que suas organizações promovem a competição de diferentes marcas e produtos, e que permitem que outros negócios sejam bem-sucedidos em suas plataformas. A audiência aconteceu no subcomitê do Comitê Judiciário da Câmara, que lida com antimonopólio.

Apesar da pressão por mudanças, Tom Dillickrath, advogado da Sheppard Mullin e ex-membro do FTC, acha pouco provável que notemos mudanças significativas num futuro próximo. "Ao longo desses 120 anos da lei antitruste vimos avanços, certamente, mas gradativos", relatou com exclusividade ao NeoFeed.

Para ele, é evidente que o assunto está ganhando novas proporções no Senado e no Congresso e que isso vai implicar em um período de maior e mais intensa atividade no setor. "Acredito que isso tudo mexa na forma como as pessoas pensam e enxergam o mercado, o poderio das Big Tech e sobre o próprio conceito de antimonopólio. Onde a concorrência acontece? Responder essa e outras questões complexas requer estudos e discussões aprofundadas", diz.

Quem compartilha de opinião semelhante é David Evans, advogado especializado em antitruste. "Enquanto a narrativa adotada pelas agências reguladoras, pelo Congresso e pelos políticos permanecer alinhada com as ideias da Escola de Chicago sobre eficiência econômica, não veremos nenhuma mudança ou resultado significativo em como a Big Tech será tratada", disse.

Em outras palavras, Evans acredita que ainda paira sobre os Estados Unidos a ideia do livro "Paradoxo Antitruste", de Robert Bork, que, de uma forma vaga, diz que o antimonopólio deve usar a própria economia para buscar eficiência.

Evans relembra o caso da Brooke Group, em 1993, que foi parar na Suprema Corte americana. Na ocasião, a Brown & Williamson Tobacco Corp acusou o grupo de monopólio. No final da disputa, favorável a Brooke Group, ficou estabelecido que o requerente precisa provar que o réu monopolizou um mercado e pode recuperar as perdas associadas à sua predação através de preços supra-competitivos.

O problema é que as plataformas controladas pela Big Tech trabalham com preços já competitivos, bem abaixo do praticado pela concorrência

O problema em questão é que as plataformas controladas por essas Big Techs trabalham com preços já competitivos, bem abaixo do praticado pela concorrência, porque o objetivo é observar o máximo possível das atividades dos compradores insensíveis a preço. Isso permite que eles desenvolvam uma compreensão abrangente das demandas desses clientes.

Esse entendimento individualizado, associado a outros dados, pode ocasionar numa análise de demanda produto a produto, consumidor por consumidor, capaz de movimentar o produto com mais rapidez e eficiência, a preços máximos.

É uma estratégia perfeita. Ou pelo menos tem sido, por enquanto.

Muito além do comércio

O levante por parte dos varejistas no ambiente online faz parte de uma segunda onda a agitar a baía de São Francisco. A primeira foi governamental: a privacidade dos usuários e o uso indevido de seus dados foram o foco dos últimos entraves jurídicos com as Big Techs. Escândalos como o da Cambridge Analytica, empresa privada que usou a mineração de dados para balizar campanhas políticas, foram acusados de influenciar as eleições americanas que elegeram Donald Trump e ser decisiva no referendo inglês que culminou no Brexit.

Neste caso específico, o Facebook foi o maior protagonista. Sua responsabilidade na questão da Cambridge Analytica, custou caro: o Facebook foi condenado pela FTC a pagar US$ 5 bilhões por violação de privacidade.

Embora seja a multa mais alta já aplicada a uma empresa de tecnologia, o valor não deve ter grande impacto na saúde financeira da empresa, que, na mesma época, viu seu valor de mercado subir mais de US$ 10 bilhões. E, como bem lembrou a senadora Warren, US$ 5 bilhões foi o que o Facebook lucrou apenas no primeiro trimestre do ano passado.

Quem também foi penalizado por questões de privacidade foi o Google. Em 2012, a empresa foi condenada pelo FTC a pagar US$ 22,7 milhões por violar configurações do Safari, buscador da Apple, a fim de rastrear hábitos de usuários que tenham optado pela navegação privada.

Neste ano, o Google levou outro baque, dessa vez por concorrência desleal em publicidades e violação das leis antitruste. A União Europeia entendeu que a empresa californiana abusou de seu domínio de mercado ao impor uma série de cláusulas restritivas em contratos com sites de terceiros que minimizam a concorrência. Por isso, o Google foi multado em 1,49 bilhão de euros.

Outro assunto que está em pauta é a criptomoeda do Facebook, a Libra. A rede social diz estar revendo e fortalecendo suas medidas de segurança e privacidade para o lançamento da moeda digital. Senadores republicanos e democratas se uniram nas queixas relativas a essa decisão, destacando preocupação pelo tema, visto o passado recente do Facebook. O próprio presidente do Fed, o banco central americano, também se mostrou alarmado.

Na Europa, as reações não foram diferentes. Segundo a Bloomberg, Bruno Le Maire, ministro francês das Finanças, foi o primeiro representante público do bloco a falar sobre a novidade. Em entrevista a uma rádio local, ele afirmou que a moeda não pode e não deve ser encarada como “soberana”.

Já o europarlamentarista Markus Ferber, membro do CSU, partido que faz parte da coalizão governista na Alemanha, convocou um alerta regulatório em relação ao Facebook por suas tentativas de se tornar um “banco-sombrio”.

A Amazon está enfrentando uma investigação antitruste na Europa pela forma com que trata os comerciantes que vendem produtos através de seu marketplace

A Amazon, por sua vez, está enfrentando uma investigação antitruste na Europa pela forma com que trata os comerciantes que vendem produtos através de seu marketplace.

A Comissão Europeia abriu uma investigação para saber se a Amazon abusa de seu duplo papel, como vendedor de seus produtos e como operador de um marketplace.

Nada disso, no entanto, parece incomodar a gigante fundada por Jeff Bezos. Amazon comemorou, nesta semana, o resultado de seu Prime Day, como são chamadas as 48 horas de promoção no site. Neste período, que aconteceu entre 15 e 16 de julho deste ano, a gigante relatou a venda de 175 milhões de produtos.

Para dimensionar a potência desse número, as vendas casadas da Black Friday e Cyber Monday, provavelmente as duas datas mais fortes do varejo americano, não chegam a esse total.

Bezos disse em nota oficial que "membros (do Amazon Prime) compraram mais de US$ 2 bilhões em produtos de pequenos e médios comerciantes".

Pode ser que a comemoração do executivo seja uma leve "indireta" às acusações de monopólio, evidenciando que a livre concorrência tem espaço na plataforma. Só resta saber se Washington vai concordar com isso – porque os varejistas, certamente, não.

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