Como contar uma história clássica, como a de Pinóquio, publicada originalmente há quase 140 anos, como se fosse a primeira vez? Voltar ao original, bebendo diretamente na fonte, e resgatar o que há de mais realista e obscuro no conto de fadas italiano foi a resposta do cineasta Matteo Garrone.

A última versão cinematográfica sobre o boneco de madeira que quer ser um menino de verdade desembarca nos cinemas do Brasil em 21 de janeiro de 2021. E a proposta do diretor é fazer o público redescobrir a obra-prima que curiosamente soa como uma parábola do mundo atual, carregado de medo, ansiedade, pobreza e corrupção.

Até porque a versão que permanece viva na memória coletiva é a da animação lançada em 1940 pela Disney, em que os aspectos mais sombrios foram suavizados. Fiel ao original, o “Pinóquio” de Garrone revisita a miséria da zona rural da Toscana do século 19, com os personagens sofrendo com o inverno rigoroso e a escassez de comida.

“É uma história tipicamente italiana e, ao mesmo tempo, universal da luta pela sobrevivência. É uma espécie de alerta para as crianças sobre os perigos do mundo, com os piores vícios que nele encontramos”, afirmou Garrone, ao NeoFeed, em Berlim, onde “Pinóquio” fez sua première mundial. “Os animais da trama, como o Gato e a Raposa, são alegorias da nossa sociedade.”

As aventuras do boneco que vê seu nariz crescer ao contar mentiras encanta o cineasta romano desde quando ele era criança. “Depois que minha mãe me contou a história, quando eu tinha seis anos, comecei a desenhar o personagem, fazendo histórias em quadrinhos. Até hoje eu tenho os desenhos na mesa do meu escritório”, recordou Garrone.

A ideia de fazer uma adaptação do clássico nasceu há cinco anos, quando Garrone buscava outro projeto relacionado a conto de fadas. O diretor mais conhecido por “Gomorra” (2008) tinha explorado o gênero, pela primeira vez, no longa “O Conto dos Contos’’ (2015).

“Decidi ler o livro ‘Pinóquio’ e fiquei surpreso, percebendo que eu não me lembrava mais de muitas coisas. Daí nasceu a proposta de revisitar uma trama que todo mundo acha que conhece, mas não conhece de fato. Até porque muita coisa foi apagada nas adaptações”, disse ele.

Na obra publicada em 1883, pelo escritor toscano Carlo Collodi (1826-1890), há muito da dura realidade da época no enredo. O tom de fábula não impediu o autor de incluir a pobreza, a fome, a ganância e a corrupção, abordando até a mão-de-obra infantil.

Com profundidade, o original sempre deu margem para várias camadas e leituras, não se limitando às crianças. E o mesmo se aplica ao novo filme, que consegue atrair a plateia infantil com a aura de conto de fadas, mas sem necessariamente poupá-la dos aspectos mais sórdidos da história, que são abordados aqui com sensibilidade suficiente para não chocar os menores.

“Apesar da intenção de apresentar princípios morais a garotos travessos, a trama não deixa de ser uma bela história de amor entre pai e filho, o que mantemos aqui”, contou Garrone. Ele trouxe Roberto Benigni, projetado mundialmente em “A Vida É Bela” (1997), para encarnar Gepeto, o entalhador solitário que confecciona a marionete a partir de um tronco de árvore.

“Roberto deu ao personagem a humanidade e a autenticidade que Gepeto precisava. E quem melhor que Roberto, que cresceu na pobreza da Toscana para entender o personagem?”, disse o diretor. O caçula de uma família de quatro filhos, Benigni sempre recorda a sua origem humilde nas entrevistas, contando que todos dormiam na mesma cama.

Para o papel do boneco que foge da escola, Garrone escalou o ator mirim Federico Ielapi. A cada manhã, durante os três meses de filmagem, o menino enfrentava uma sessão de maquiagem de quatro horas. Era o tempo necessário para que ele se transformasse na marionete, usando próteses faciais assinadas por Mark Coulier, responsável pela “makeup” em títulos da franquia “Harry Potter”.

“Reduzimos os efeitos de computação gráfica ao mínimo, para tornar Pinóquio mais concreto e realista”, contou Garrone, que buscou inspiração nas imagens originais. Na época, os desenhos foram assinados por Enrico Mazzanti, o primeiro ilustrador que trabalhou com Collodi, dando ao personagem traços quase góticos – muito distante da imagem fofa criada posteriormente pela Disney.

“Para manter a ideia de redescobrir o clássico, era importante que o visual do nosso Pinóquio se afastasse daqueles de produções anteriores”, afirmou o diretor, lembrando a infinidade de adaptações. O livro de Collodi inspirou peças de teatro, séries de televisão e filmes ao redor do mundo.

Além do desenho da Disney, outras duas versões merecem destaque. Uma delas é a minissérie de TV “Le Avventure di Pinocchio” (1972), assinada por Luigi Comencini e com Gina Lollobrigida no papel da Fada. A outra foi reimaginada pelo próprio Benigni, que antes de viver Gepeto já tinha interpretado o boneco no longa “Pinóquio”, dirigido por ele, em 2002.

E novas interpretações estão a caminho, como a que o mexicano Guillermo del Toro desenvolve atualmente para a Netflix. E tudo indica que o seu musical de animação em “stop motion” (a artesanal técnica de animação de massinha) dará um tom sombrio à história do fantoche que ganha vida.

Já Robert Zemeckis prepara para a Disney um live-action do “Pinóquio” de 1940 – o que vem ao encontro da estratégia do estúdio de realizar versões em carne e osso de suas animações, como ocorreu com “Aladdin” (2019).

Tom Hanks está em negociação para interpretar Gepeto nessa adaptação, que promete ignorar toda a escuridão inserida da história original. Justamente o que Garrone se esforçou para restaurar aqui, respeitando a visão mais dura e tenebrosa de Collodi, o pai de Pinóquio.

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