Distopia, cacotopia ou antiutopia são termos que definem uma visão sombria do futuro da humanidade – com guerras de grandes proporções, epidemias, rebeliões de robôs, extermínios e regimes autoritários que controlam a vida dos cidadãos.

Tanto na literatura quanto no cinema e nas histórias em quadrinhos, o tema atravessou o século XX em obras que procuraram alertar seus contemporâneos sobre os erros do presente que poderiam levar o mundo a situações de opressão.

O escritor inglês George Orwell – pseudônimo de Eric Arthur Blair (1903-1950) – talvez tenha sido aquele que mais se aproximou de “premonições” realistas, sem imaginar seres humanoides e máquinas fantásticas tão comuns nos chamados livros de ficção científica.

Seu olhar “pé-no-chão” focou na prática de ideologias e políticas que, certamente, levariam a supressão de direitos das massas. Quando morreu, há exatos 70 anos, Orwell havia testemunhado quatro desses regimes, que acabariam protagonizando o maior conflito bélico da história e um número de mortes difícil de ser mensurado: o nazismo, o fascismo, o capitalismo e o comunismo. Somente os dois últimos tinham sobrevivido ao final da Segunda Guerra Mundial.

Estimulado pela sensibilidade em perceber além dos fatos, quase como um visionário, ele escreveu no fim da vida dois livros que pareciam críticas exclusivas ao comunismo: 1984 e A Revolução dos Bichos.

Sua obra teria de esperar até a virada do século XXI para ser redimida, quando a experiência socialista russa havia desaparecido com a União Soviética (1991) e as demais – China, Cuba e Coréia do Norte – se transformaram em ditaduras por questão de mera sobrevivência política.

Mais que isso, ganhou mais projeção ainda neste final de segunda década do milênio, com a polarização política que está dividindo o mundo, em nome de ideias populistas, autoritárias e de afronta aos direitos civis. Seu pensamento, portanto, está mais atual que nunca.

Quatro lançamentos no Brasil podem ser uma oportunidade de se constatar isso. Além das reedições de luxo com capa dura e cheias de ensaios extras de seus dois livros mais famosos, a Companhia das Letras acaba de publicar uma antologia com seu pensamento político, Sobre a Verdade, que reúne textos extraídos de seus romances, ensaios, cartas e reportagens.

Merece também atenção a primeira biografia em português do escritor, a indispensável Orwell – Um Homem do Nosso Tempo, do seu compatriota Richard Bradford. É uma obra oportuna para interessados em descobrir o que ele pensava e questionava ou redimensionar sua importância para aqueles que já a conhecem.

Quem leu Na Pior em Paris e em Londres, um dos mais contundentes relatos sobre a fome e a miséria entre as duas guerras mundiais, sabe que Orwell viveu e produziu em um período dos mais turbulentos para a humanidade. Como repórter, ele inovou ao romper as linhas que separavam jornalismo, literatura e análise política.

Tudo isso também foi misturado nos romances que escreveu. E acabou arremessado entre extremos. A direita via-o como um incompreendido em relação a práticas “necessárias” de repressão em que os fins justificavam os meios. A esquerda, com os mesmos argumentos, metralhou-o como inimigo do ideal socialista de um governo supostamente voltado à maioria.

Para Orwell, como mostra no angustiante 1984, muitas perguntas deveriam ser feitas a um lado e a outro e ao próprio cidadão comum diante de fatos e ideias. A inviabilidade de ideologias de tendência autoritária estava no fato de que estas esbarravam nos sete pecados capitais, que levariam a uma busca incessante por hierarquia e submissão/dominação de poucos, na busca por vantagens pessoais e privilégios. Ou seja, o poder corrompe, quase sempre.

E foi o que mostrou de forma monumental no pequeno volume A Revolução dos Bichos, agora relançado como A Fazenda dos Animais, seu título original. Em situações assim fica difícil distinguir entre homens e porcos, disse ele.

Professor e pesquisador da Universidade de Ulster, autor de 25 livros – alguns premiados –, Bradford constrói um perfil humano de Orwell. Ele mostra um Orwell eternamente em conflito sobre que posição tomar diante de um mundo em absoluto transe ideológico, onde ideias extremistas abriam amplas possibilidades para uma guerra de grandes proporções, uma vez que ele vinha de uma família de classe média alta marcada pela complacência ao que acontecia ao seu redor, sem uma ameaça real e direta. Ou explícita. Até promover uma ruptura a tudo isso, sem, porém, conseguir se libertar dessas amarras.

O escritor inglês George Orwell

Como escreve o autor, Orwell usou a palavra escrita para prever possibilidades sombrias e diagnosticar inclinações terrivelmente endêmicas da sociedade. “Biografias, por sua natureza, tratam do passado, mas esta narrativa da vida de Orwell será um pouco diferente. O livro o trará ao presente e, com isso, mostrará que certas perguntas feitas pelo escritor à sua geração permanecem sem resposta e, por vezes, sem terem sido discutidas”, observou o biógrafo, na apresentação. E acrescentou: “Nenhum autor é capaz de prever o futuro. No entanto, o talento de Orwell como pressagiador é extraordinário”.

Tanto que, desde o início dos anos de 1930, afirmou Bradford, Orwell foi astuto em identificar aspectos que resistiriam ao tempo e ressurgiriam muitas décadas depois. São exemplos o antissemitismo e a tolerância do mundo livre aos regimes autoritários. Orwell também identificou o materialismo ignorante, a política populista, o nacionalismo descerebrado, o duplipensar como o motor do discurso político, isto é, mentiras descaradas, o ressurgimento da xenofobia aparentemente endêmica, e, é claro, o Brexit, referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia.

“Em sua maioria, os suspeitos de sempre não estavam vivos quando Orwell nos deixou, em janeiro de 1950, mas ele não ficaria surpreso ao vê-los como figuras-chave em reencenações dos dramas orwellianos” dos dias que correm – Theresa May, Donald Trump, Boris Johnson, Michael Gove, Jeremy Corbyn, Nigel Farage, Vladimir Putin, Xi Jinping e outros.

Envolvido pelas mais terríveis mazelas sociais, Orwell adotou o que se chamaria de escrita furiosa, contundente e socialmente militante, de acordo com os preceitos mais nobres da profissão de repórter. E foi essa independência, essa liberdade de pensar que deu a si mesmo que o condenou ao limbo. Além de enfatizar tudo isso, Bradford conduz o leitor a tentar ver o presente sob a visão do romancista premonitório.

A conclusão é que o momento aponta para a proximidade das previsões do escritor. A ascensão da extrema direita em algumas das grandes potências, além de nações periféricas, como na América Latina, e os resquícios de ditaduras comunistas colocam o mundo em uma posição à beira das trevas. É ler para crer.

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