Seria correto dizer que o compositor e cantor americano Bob Dylan fez uma revolução sozinho. Tudo teve início quando deu um novo sentido à música e à cultura ocidental ao compor e gravar Blowin’ the wind, em 1963.
Essa é a primeira grande canção contundente contra a guerra e que rompeu com a ideia de que música não devia tratar de temas sociais, políticos e existenciais. No caso, a falta de sentido das guerras, quando milhares de americanos morriam na Guerra do Vietnã.
Nos anos seguintes, Dylan lançou discos com letras imensas, sem seguir regras, convenções ou fórmulas, que tratavam de questões existenciais e filosóficas como a fragilidade da vida (Like a Rolling Stone e Mr. Tambourine Man) ou racismo (Hurricane).
Causou tanto impacto que ultrapassou os limites da música, invadiu a poesia e a literatura e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2016. Para a Academia Sueca, o artista "criou novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana".
Comparado aos poetas fundamentais da poesia americana Walt Whitman e Emily Dickinson, tornou-se o único nome a ganhar os mais importantes prêmios da literatura, da música e do cinema até hoje. Além do Nobel, tem em casa o Pulitzer, o Oscar e o Grammy.
Suas letras sobre questões sociais, culturais e políticas, amparadas em filosofia, poesia, religião e mitologia, mudaram a música e a cultura pop. Não dá para imaginar o que teria acontecido com a contracultura da década de 1960 se ele não tivesse apertado o botão de tudo.
Carolyn Kellogg, crítica do Los Angeles Times, o definiu como “rebelde, curandeiro (...) que cantou uma geração inteira através da guerra e da paz, além dos perigos da inquietação e da autocomplacência”.
Fato foi que como um profeta – “meninos, eu sei o caminho, sigam-me”, poderia ter dito –, Dylan fez a cabeça dos Beatles e dos Rolling Stones e redimensionou suas histórias. Sem ele, ambas as bandas poderiam ter sido apenas mais dois grupos breves de iê-iê-iê, para usar um termo brasileiro que significa um pop pobre e passageiro.
Natural que Dylan passasse a ser tratado como um poeta e pensador de seu tempo e de nosso tempo também, porque ele não para de produzir grandes canções. E suas letras fossem parar nos livros. E, melhor, chegassem nesse formato ao Brasil, em edição bilingue.
Em 2017, saiu o primeiro volume de Bob Dylan – Letras, com sua produção de 1961 a 1974. Agora em dezembro, no ano em que ele completa seu 80º aniversário, os fãs podem conferir o livro 2, com versos dos 18 discos gravados em estúdio entre 1975 e 2020.
A bela edição da Companhia das Letras mostra tudo que ele fez nesses 45 anos, incluindo clássicos modernos como Blood on the Tracks, Oh Mercy e Time Out of Mind. E sem perder o impacto, a novidade e a necessidade de fazer pensar.
A comparação é inevitável entre os dois volumes, pois é comum que compositores tenham uma primeira fase intensa de produção e depois não consigam repetir a criatividade com regularidade. Com Dylan, no entanto, isso jamais aconteceu.
Até começar a pandemia, ele continuava incansável e com canções e letras acima da média, em versos que conseguem interpretar a realidade como ele sempre fez, à frente de seu tempo.
Para se ter uma ideia do quanto ele é incansável e uma fonte inesgotável de produção, o disco que fecha o livro é Rough and Rowdy Ways, de 2020, lançado em plena pandemia de Covid-19. O primeiro disco transcrito é Blood on the Tracks, de 1975.
A tradução ficou por conta do respeitado Caetano W. Galindo. Como diz a apresentação, a poesia de Dylan atesta o poder narrativo das letras, que misturam erudição — em referências a T.S. Eliot, Lewis Carroll e Shakespeare, por exemplo — e oralidade.
São letras que podem ser lidas como verdadeiras crônicas da nossa época. “Surpreendentes, reveladoras e em constante diálogo com a filosofia, a religião e a literatura, têm a força de épicos condensados.”
Não é exagero dizer que o imaginário de Dylan pode ser compreendido como uma síntese das complexidades do ser humano, como destaca ainda a apresentação. “Seu lirismo explora os meandros da paixão, as desilusões amorosas, o desejo de liberdade, a solidão, a espiritualidade, a fé e a perturbação provocada pela morte.”
A antologia mostra que Dylan se mantém relevante e pungente ao longo de uma extensa trajetória. E pode ser lida de duas formas: ou com acompanhamento das músicas, ou como uma obra poética de alta qualidade daquele que é, pode-se dizer, um dos nome mais importante da cultura pop nos últimos 60 anos.