O catálogo da Semana de Arte Moderna, que completa o seu centenário neste mês, aponta que 81 obras entre pinturas, desenhos e esculturas teriam sido expostas naqueles três dias de evento. Ao fim da exposição, para onde teriam ido esses trabalhos? A resposta mais provável é: retornado para os ateliês dos artistas de onde dificilmente sairiam pelos próximos 30 anos.
Nos anos 1920, a cidade de São Paulo não tinha um mercado de arte estabelecido, com galerias e espaços expositivos. A cidade mal tinha um museu. A Pinacoteca do Estado, inaugurada em 1911, ocupava apenas uma sala do atual prédio, que era antes do Liceu de Artes e Ofícios.
Quem fazia as vezes de espaços culturais eram as casas de membros da elite paulistana. Um exemplo era a residência do político e poeta Freitas Valle batizada de Villa Kyrial. O número 300 da Rua Domingos de Morais, na Vila Mariana, era um lugar de encontro de pensadores, poetas, músicos e artistas – as primeiras conversas sobre a Semana de Arte Moderna teriam acontecido lá.
"Freitas Vale era uma figura-chave, que se colocava quase como uma missão educadora. Ele tinha uma coleção grande e, para os artistas, ter uma obra em sua casa era mostrar que tinha caído no gosto", conta Maria Izabel Ribeiro, professora de História da Arte da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).
Embora os modernos tivessem livre circulação pela Villa Kyrial e participassem da programação, em sua coleção os destaques eram artistas ligados à arte acadêmica, como Almeida Júnior e Henrique Bernardelli.
Em contraposição, havia o Salão Moderno da aristocrata Olívia Guedes Penteado, instalado na antiga cocheira de seu palacete na rua Conselheiro Nébias, no Campos Elíseos. Em carta ao poeta Manuel Bandeira, Mário de Andrade descreveu o espaço:
"Ficou uma maravilha, você não imagina. Decoração inteiramente linear e… volumal do [Lasar] Segall [...] Só numa parede de fundo é que tem uma figura duma nobreza de linhas, encanto! O resto é uma pura combinação das mais belas cores deste mundo, só que tanta cor havia de matar os quadros, pois é o contrário, o Léger, a Tarsila ficam sublimes lá dentro."
Quem comprava arte moderna, além dos figurões como d. Olívia e Paulo Prado (saiba mais sobre o empresário), eram os próprios artistas e os escritores como Mário de Andrade – que, apesar de não ser um homem de posses, separava parte do seu ordenado como professor e funcionário público para aquisição de obras.
Entre as cerca de 600 peças que formam a coleção do escritor, estão as pinturas icônicas Homem Amarelo e A estudante russa, de Anita Malfatti, desenhos de Tarsila do Amaral, trabalhos de arte popular e santos barrocos. "Na coleção dele, você percebe uma curadoria. As aquisições fazem sentido para a pesquisa que ele fazia sobre arte brasileira, que envolvia o barroco e arte popular", diz Ribeiro.
A importância do conjunto para o País, parte preservada no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), foi reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e tombada em 1996.
A coleção do poeta Guilherme de Almeida, ainda que mais modesta do que a do autor de Macunaíma, também se mantém preservada em sua residência na rua Macapá, no Pacaembu, que funciona hoje como casa museu e centro cultural, onde acontecem saraus e oficinas de literatura, artes visuais e cinema.
Ambas as coleções foram compradas pelo Governo do Estado de São Paulo entre as décadas de 1960 e 1970, o que contribuiu para a institucionalização dessa produção. No entanto, a maioria dessas coleções não teve a mesma sorte. Tanto o palacete de d. Olívia, decorado com móveis e tapeçaria de estilo mais clássico que vieram de Paris, quanto o Salão Moderno não existem mais.
E muito menos a coleção na qual havia os quadros A Caipirinha e A Feira, de Tarsila do Amaral; Os patinadores e uma escultura de madeira, de Lasar Segall; duas aquarelas de Cícero Dias; uma pintura a óleo e uma aquarela de Antônio Gomide; uma pintura de Reis Júnior; um desenho de Di Cavalcanti; seis esculturas de Victor Brecheret, tapetes e almofadas de Regina Gomide Graz (uma raridade de se encontrar atualmente); e a presença internacional da tela A compoteira de peras, do francês Fernand Léger, hoje no acervo do Masp.
Após sua morte em 1934, a coleção foi repartida entre suas duas filhas e, aos poucos, foi vendida. Uma obra da coleção, entretanto, continua bem junto da família: a escultura Mise au Tombeau, de Victor Brecheret, que enfeita o mausoléu dos Guedes Penteado, no cemitério da Consolação.
Nova elite, novos colecionadores
O fato é que, depois da Semana, essa primeira geração de artistas modernistas ficou esquecida por cerca de 20 anos. Para se ter uma ideia, após a primeira exposição individual em São Paulo, em 1929, a pintora Tarsila do Amaral só voltou a expor sozinha na capital em 1950 e depois em 1961.
O interesse pela primeira geração de modernistas voltaria no fim dos anos 1940 com o surgimento de um mercado de arte e uma nova elite paulistana composta por migrantes e imigrantes que viam na arte uma possibilidade de ascensão social. Com o trabalho desses artistas desvalorizados e guardados em seus ateliês, havia neles uma ótima oportunidade de negócio.
Os dois maiores exemplos paulistas são o jornalista Assis Chateaubriand e o casal de industriais Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado. O primeiro, com a ajuda do marchand Pietro Maria Bardi, montou a coleção que constitui o acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Já o conjunto de obras de Yolanda e Ciccillo compôs o Museu de Arte Moderna de São Paulo e, poucos anos depois, foi doado ao Museu de Arte Contemporânea na Universidade de São Paulo. "O colecionador tem um papel muito importante porque ele influencia o que pode despontar no mercado", afirma o pesquisador José Armando Pereira da Silva, autor do livro Mercado de Arte Moderna em São Paulo.
Em paralelo à institucionalização dessas coleções, que leva obras do modernismo nacional para os museus dando destaque a essas produções, outras coleções particulares foram formadas – para citar apenas mais dois exemplos: Nemirovsky e Leiner.
O casal José e Paulina Nemirovsky começou a sua coleção no fim dos anos 1950, período em que o empresário Isaí Leiner também adquire a maior parte de suas obras. Mas essas coleções tomaram destinos distintos. A primeira está preservada em comodato com a Pinacoteca desde 2004 e foi tombada em 2021 pelo Iphan como patrimônio nacional. A segunda foi diluída.
"A preocupação em preservar a coleção reunida tem a ver com a situação financeira familiar", afirma a curadora Regina Teixeira de Barros. "Conforme os herdeiros vão precisando de dinheiro, os trabalhos vão sendo vendidos. O mais comum é a coleção se dispersar depois da morte do colecionador."
Assim que as obras voltam para o mercado, dificilmente entram para uma coleção pública. Teixeira de Barros estima que menos de 10% das obras produzidas pelos artistas modernos estejam no acervo das instituições. "Essas obras são incomparáveis para os museus brasileiros", afirma. E o país acaba perdendo suas obras primas.
Um triste exemplo é Abaporu, de Tarsila do Amaral, posto no prego pelo empresário Raul Forbes, em 1994, e arrematado pelo colecionador argentino Eduardo Costantini por US$ 1,35 milhão – quantia pequena perto das altas cifras que as telas da pintora vêm alcançando.
Caso não sejam institucionalizadas, as coleções, que são as grandes obras às quais os colecionadores dedicam sua vida, se perdem em poucas gerações.