“A Caipirinha”, de Tarsila do Amaral (1886-1973), ganhou o noticiário dias atrás porque foi arrematada em leilão por R$ 57,5 milhões, um recorde em transações do tipo em território brasileiro. Mas se para quem acompanha de fora o mercado de arte a cifra pode soar absurda, quem está no meio entende o valor como perfeitamente adequado a uma obra importante de uma artista de tal quilate.

Tarsila já era uma figura aclamada quando pintou “A Caipirinha”, em 1923: integrava um seleto grupo de artistas capazes de influenciar um período e marcar a própria identidade cultural brasileira - refiro-me aos modernistas. Essa escola frutificou-se em todas as manifestações artísticas possíveis.

Nas artes visuais, além de Tarsila, podemos citar Anita Malfatti (1889-1964); na música, Heitor Villa-Lobos (1887-1959); na arquitetura, temos Oscar Niemeyer (1907-2012); na literatura, ficamos com as obras de Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945) e tantos outros.

O reconhecimento póstumo de Tarsila é digno de nota, contudo, e se reflete no mercado de arte. Em 1995, o empresário e colecionador argentino Eduardo Constantini arrematou “Abaporu” por US$ 1,35 milhão — então a maior quantia já paga por uma tela brasileira.

É difícil determinar quanto valeria hoje a obra, que integra o acervo do Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba). Quando esteve em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 2018, a apólice de seguro garantia US$ 45 milhões. Há quem estime que o quadro já possa ser precificado em US$ 200 milhões.

Ao próprio MoMA, aliás, se deve parte das razões da valorização da obra de Tarsila. O museu nova-iorquino adquiriu recentemente “A Lua” por US$ 20 milhões. Dado o prestígio da entidade, é claro que a cifra, recorde para uma obra de arte brasileira, acabou inflacionando todo o conjunto dos trabalhos da artista.

Essa valorização - não só financeira, mas também com a popularização de Tarsila no imaginário nacional - se sustenta graças ao trabalho muito bem-feito por instituições que procuram promover o nome dela, além do profissionalismo de algumas galerias que têm respondido muito bem ao crescente interesse de colecionadores brasileiros.

Ressalto, sobretudo, o valor que se atribui às poucas e importantes obras do período antropofágico da pintora. Foi um período curto e intenso, de poucos mas vigorosos trabalhos. De acordo com o catálogo raisonné da artista, não se encontram mais de 20 dessas obras.

São muito especiais porque sintetizam vigor, originalidade e brasilidade. Existe uma demanda grande do mercado por esses trabalhos — e sempre será uma demanda reprimida, pois uma parcela considerável dessas peças já integra o acervo de instituições de arte.

Tal explosão de preços justifica o fato de um colecionador brasileiro pagar R$ 57,5 milhões por “A Caipirinha”. O valor é compatível com os preços praticados pelo mercado internacional de arte. Em dólares, foram cerca de US$ 11 milhões — muito condizente, considerando que se trata de uma tela excepcional de uma artista excepcional.

Em 2019, o conjunto das obras leiloadas da artista japonesa Yoyoi Kusama (1929- ) atingiu US$ 102 milhões. Os trabalhos da norte-americana Joan Mitchell (1925-1992) somaram US$ 83 milhões. Também dos Estados Unidos, Georgia O’Keeffe (1887-1986) alcançou US$ 66 milhões com as vendas de suas obras. Em 2016, uma pintura da mexicana Frida Kahlo (1907-1954) foi negociada por US$ 12 milhões. Ou seja, considerando os pares de Tarsila — artistas mulheres com alta representatividade cultural em sua carga estética, originais e reconhecidas —, os preços da obra da brasileira são ainda inferiores. Mas com possibilidade de crescimento.

É importante frisar que, no mundo contemporâneo, com inflação muito baixa e juros reais negativos, é crescente a procura por obras de arte como investimento

É importante frisar que, no mundo contemporâneo, com inflação muito baixa e juros reais negativos, é crescente a procura por obras de arte como investimento. São ativos físicos; revestem de importância a economia real e, por representarem lastro, permitem menor especulação. Observo uma migração de recursos para as artes.

Isso é um sinal muito positivo para nossa cultura, coerente com a valorização expressiva de uma artista como Tarsila do Amaral, um ícone brasileiro, e fortalece o discurso de que o Brasil pode — e deve — ser visto como muito mais do que uma grande fazenda exportadora de commodities. Conseguimos exportar a bossa-nova, com Tom Jobim (1927-1994), Vinícius de Moraes (1913-1980) e João Gilberto (1931-2019). E conseguimos exportar Tarsila do Amaral.

*Marcos Amaro é artista plástico, colecionador e empresário. Ele também é presidente do FAMA Museu e Campo e membro dos conselhos do MAM e do MASP.