É quase impossível notar algum sotaque no português de Gilles Coccoli. A pronúncia praticamente impecável do executivo francês tem uma explicação. Filho de expatriados, ele desembarcou no Brasil aos seis anos e, a partir dessa primeira experiência, acumulou outras longas estadias no País.

A última já dura nove anos. Desde 2013, ele comanda a operação local da Edenred, dona da Ticket, avaliado em € 11,3 bilhões. Assim como Coccoli, o grupo francês mantém uma relação de décadas com o Brasil. A companhia chegou aqui em 1976, com a criação do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT).

Com um mercado de R$ 150 bilhões anuais, o PAT rege os benefícios concedidos pelas empresas aos seus funcionários e é dominado por Ticket, Alelo, Sodexo e VR. E agora está no centro de diversas mudanças em suas normas, que prometem redesenhar profundamente a competição no segmento.

Nesse novo cenário, o vínculo estreito da Ticket com o País e, principalmente, com o segmento é, na visão de Coccoli, uma das principais armas para enfrentar a chegada de rivais como iFood, o unicórnio Swile e startups de benefícios como Flash e Caju.

“Somos uma empresa de muita história nesse segmento, são 46 anos”, diz Coccoli, ao NeoFeed. “Gostamos de pensar em termos de pioneirismo. Então, não reagimos ao que a concorrência faz. Quem faz a ruptura somos nós.”

Esse novo contexto tem como ponto de partida o decreto 10.854, de 2021, que rege o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). Entre outras questões, ele proíbe práticas como o rebate – descontos concedidos às empresas contratantes – e prevê que o usuário possa fazer a portabilidade do valor do vale-alimentação ou vale-refeição para outro serviço.

Para Coccoli, não há problemas em seguir as novas regras, desde que haja isonomia entre todos os players. Ele tem reservas, por exemplo, em relação a um conceito difundido por algumas das empresas que estão ingressando nesse mercado: os benefícios flexíveis, que permitem ao usuário gastar os valores destinados pelas empresas dentro do PAT com outras categorias além da alimentação.

“Quando se fala de usar um benefício para cultura, tem que ser realmente uma rede de cultura. Quando se trata de alimentação é alimentação e assim por diante”, diz. “O PAT está relacionado à alimentação. Daí, para algo que serve para mais aplicações, não é o mesmo programa.”

Na entrevista ao NeoFeed, o executivo fala mais sobre o tema e conta como a Ticket está se movimentando nesse espaço. Além de falar no investimento para a aquisição de 51% da Greenpass, de tags para pedágios, e de contar sobre novidades nos portfólios da Ticket Log e da Repom, braços de frota e mobilidade da Edenred no Brasil. Confira:

O setor de benefícios vive um momento de mudanças importantes no PAT e a chegada de uma série de startups e de novos rivais. Como a Edenred está se posicionando nesse contexto?
Nós estamos prontos para nos alinhar com o que está sendo colocado. Somos uma empresa de muita história nesse segmento, são 46 anos. Então, gostamos de seguir pelas regras. Alguns desses novos players estão se adaptando às regras. O fato é que esse mercado já teve mais de 200 concorrentes há 15, 20 anos. Então, tem altas e baixas em termos de concorrência. Essa nova concorrência é boa para o que fazemos. Existem novas empresas e startups em todos os segmentos e não há motivo para não ter também no nosso. Mas não tem, para a Ticket, um grau de grande surpresa ou de movimento tecnológico de ruptura. Gostamos de dizer que quem faz a ruptura somos nós.

Mas vocês não enxergam esses novos players como uma ameaça?
Gostamos de pensar em termos de pioneirismo. Então, não reagimos ao que a concorrência faz. E nós não temos problema nenhum quando todo mundo segue as mesmas regras. Então, nesse contexto, esse jogo é um jogo bom, equilibrado e gostamos de jogar.

Não há uma isonomia entre as regras que empresas tradicionais seguem e aquelas impostas a esses novos entrantes?
É uma questão de interpretação de regras e ainda não há jurisprudência do poder público em tudo. É normal, as coisas chegaram agora. Nós temos uma intepretação por estar no mercado já há um certo tempo e achamos que ela é boa, porque entendemos o intuito, por exemplo, do PAT, que tem a ver com alimentação do trabalhador e nada além disso. Com o tempo, isso vai se nivelar. Sobre a concorrência, quase todos os bancos tinham uma solução de tíquete há 20 anos. Os próprios Correios tinham sua solução. Então, houve uma onda, pois todo mundo achava que era fácil e podia fazer. Estamos, de novo, em uma época em que empresas estão entendendo que é um mercado que dá para entrar com alguns ativos. Ok, estamos dispostos a discutir isso no âmbito do mercado.

A Ticket tem se movimentado e lançou recentemente, por exemplo, um cartão com benefícios flexíveis. Como esse produto se encaixa nesse momento do mercado?
O Super Flex é um cartão que tem vários usos possíveis. Você tem, por exemplo, uma carteira para o home office, que é uma maneira de oferecer ajuda de custo para pagar uma conta de energia, de internet, até uma cadeira. Mas essa carteira tem eu ser usada com essa finalidade. São usos controlados, o que é justamente a nossa interpretação da lei.

O que é exatamente essa interpretação?
Quando se fala de usar um benefício para cultura, tem que ser realmente uma rede de cultura. Quando se trata de alimentação é alimentação e assim por diante. Então, o Super Flex assegura que realmente o benefício está sendo usado para aquilo que é previsto. As empresas escolhem os limites, os valores e nós somos responsáveis por gerir a rede. Traz a segurança para as empresas de não entender amanhã que aquela carteira era aberta demais e o que o uso que foi feito não era o destinado e o que estava previsto na origem. Hoje, muito dos multibenefícios que nós ouvimos no mercado são principalmente alimentação, que é o benefício bem conhecido. Eu só quero relembrar que o PAT está relacionado à alimentação do trabalhador. Daí, para algo que serve para mais aplicações, não é o mesmo programa.

E quanto às operações de frota e de mobilidade? Há alguma novidade nessas áreas?
Depois de uma fase de testes, estamos lançando o que a gente chama de Mapa Log. É um dashboard que dá informação estratégica para o posto de combustível, ou seja, qual é o volume transacionado por dia, por semana, por mês. Mas o painel oferece mais. Ele dá uma percepção de como esse posto está em relação ao mercado onde ele se insere. É possível ver o que está acontecendo a 5, 10, 20 km, ou seja, a posição dele em termos de preço e volume em relação à concorrência. E tem a opção de fazer promoções, campanhas e dirigir mais volume para esse estabelecimento. Então, é uma visibilidade total sobre o que está acontecendo no negócio e no mercado dele.

"O PAT está relacionado à alimentação do trabalhador. Daí, para algo que serve para mais aplicações, não é o mesmo programa"

E no portfólio de gestão de frotas? O que há de mais novo?
Nós colocamos no TED, que é um assistente virtual, baseado em aprendizado de inteligência artificial, um canal aberto entre o gestor de frotas e os motoristas. Então, eu sou gestor, tenho meu dashboard e do outro lado, o caminhoneiro com o aplicativo, tem ícone de notificação de informação, que vem do gestor. Esse gestor consegue se comunicar com os motoristas de maneira segmentada. Para um, para dez, ou para todos, e passar as mensagens que ele julga relevantes. Isso permite uma comunicação mais eficiente, em tempo real, em relação a, por exemplo, preço de combustível. Pela plataforma, você o quanto economiza por litro se usar essa ou outra rota. Então, o gestor sugere uma rota alternativa, porque o preço do combustível naquele trajeto baixou. É dinâmico.

Como o investimento na compra de 51% da Greenpass se encaixa nessa estratégia?
Dentro dessa estratégia de beyond fuel que a gente chama, a parte de pedágio era um ponto relevante. Com a Greenpass, a ideia é poder ser um provedor para as frotas da própria Ticket Log, mas também para frotas de terceiros. Também queremos unir as informações coletadas nessas transações de pedágio com os nossos dados pra complementar as informações que damos aos gestores. Startups como a Greenpass sempre têm boas ideias, que podem complementar o que estamos fazendo. Do nosso lado, temos centenas de milhares de veículos na base, e um histórico e experiência com a gestão de frotas grandes, o que vai fazer todo sentido pra Greenpass no seu desenvolvimento comercial e nossa vontade buscar as vendas cruzadas.

Outras aquisições e investimentos estão no escopo da Edenred no Brasil?
Está sempre na nossa estratégia, seja para consolidar portfólio ou adquirir tecnologia, e estamos atentos às oportunidades no País. Só quero relembrar que quando fizemos o acordo com a Embratec, em 2016, não era o momento econômico e político mais fácil do Brasil e fizemos uma operação grande, trazendo muito capital pro Brasil. Então, nós seguimos enxergando o País ainda como um mercado de grande potencial, no que fazemos hoje e no que pretendemos fazer amanhã. O Brasil é um mercado muito maduro, que aponta para as coisas. Nós migramos para o cartão no início dos anos 2000, a Europa está migrando agora. Então, tem coisas que acontecem aqui por ser um mercado super dinâmico. O Brasil é um laboratório para o mundo inteiro.