Contar a história de um boneco usando os mais avançados recursos do mundo digital não faria sentido para Guillermo del Toro. O mexicano preferiu a “imperfeição” do stop motion, a artesanal técnica de animação com massa de modelar, para revisitar o fantoche de madeira que sonha ser um menino de verdade.
Com lançamento nas salas de cinema no dia 24 e na Netflix em 9 de dezembro, “Pinóquio por Guillermo del Toro” é o que o diretor sempre vislumbrou: “a história de um boneco representado por um boneco”. Mesmo com alguma produção digital envolvida, o longa-metragem resgata o clássico italiano com a magia nostálgica de um produto feito à mão.
“Como forma de arte, há uma grande diferença entre o stop motion e o processo digital”, contou Del Toro, na conta oficial do filme nas redes sociais. “No início do stop motion, havia os efeitos indesejados, o brilho dos pelos e dos tecidos e até mesmo a poeira atmosférica nos sets. E essa imperfeição era bonita de se ver, por mostrar o como o filme é feito”, completou.
Para o diretor, a sua versão cinematográfica da obra publicada em 1883, pelo escritor toscano Carlo Collodi (1826-1890), exigia um exercício artesanal. “Com a sensação de algo entalhado, pintado e esculpido”, disse ele.
O fato de o mercado de animação estar mergulhado na era digital e de o stop motion estar “à beira da extinção” no cinema não o desencorajou. Foram realmente poucos os longas-metragens que, dos anos 2000 até aqui, recorreram à técnica onde os personagens mudam sutilmente de posição, sendo movimentados e fotografados quadro a quadro.
Os exemplos incluem “O Fantástico Sr. Raposo” (2009), de Wes Anderson, e “Anomalisa” (2015), da dupla Charlie Kaufman e Duke Johnson. No cinema, o stop motion é mais usado atualmente em curtas-metragens – já que a técnica é muito mais demorada, se comparada à de computação gráfica. Seu emprego é mais comum na produção de comerciais, videoclipes e videogames.
“Eu busquei aqui a expressividade e a essência material de uma animação feita à mão. Mas com a sofisticação do movimento proporcionada pela nossa pesquisa sobre a mecânica e a manipulação das marionetes”, afirmou Del Toro.
E o resultado impressiona visualmente. O movimento dos personagens é extremamente fluido, mas sem perder a sensação do toque humano por trás. É como se o espectador pudesse sentir que os bonecos foram manipulados pelos membros da equipe no set de filmagem.
A proposta foi criar fisicamente tudo o que fosse possível – deixando só os efeitos impraticáveis no stop motion para os profissionais do digital. Quando não havia outro jeito, como nas cenas de mar e nas tomadas subaquáticas, a computação gráfica entrou em cena.
Tudo foi abordado como se “Pinóquio” fosse um filme de “live action”. A produção envolveu 40 animadores manipulando personagens e objetos em cerca de 60 cenários. E os animadores ou marionetistas recebiam as orientações do diretor como se fossem os atores, no sentido de transmitirem a emoção dos personagens em cada mínimo gesto, buscando uma performance natural.
“Em termos de escala, usamos bonecos de tamanhos diferentes, de acordo com a necessidade”, contou Del Toro. Para interagir com o Grilo Falante, por exemplo, a equipe usou um Pinóquio gigante, permitindo que o grilo estivesse no ombro do boneco, sussurrando no seu ouvido. “Em outras cenas, usamos um Pinóquio minúsculo”, disse o diretor.
A maioria dos bonecos foi feita com rostos mecânicos, por baixo de uma pele de silicone. Isso garantia um sistema com minúsculas articulações pronto para ser manipulado pelo animador, de acordo com a expressão facial que o roteiro pedia.
Por ser feito de madeira, um material mais duro, Pinóquio exigiu um tratamento diferente, para ganhar mais realismo. Todo o seu rosto tinha de ser substituído a cada nova emoção do personagem. Era uma espécie de máscara, encaixada, que podia ser trocada.
“É uma encarnação particularmente bela de Pinóquio, um conto que sobreviveu aos séculos. É uma fabula muito próxima do meu coração”, afirmou Del Toro, que levou quase uma década e meia para ver seu projeto sair do papel.
O filme com orçamento de US$ 35 milhões foi anunciado em 2008, mas levou dez anos para ser financiado. Depois de Del Toro bater à porta dos grandes estúdios de Hollywood, sem sucesso, a Netflix abraçou a sua empreitada em outubro de 2018.
O cineasta atribuiu a dificuldade de viabilização tanto à técnica do stop motion (por não ser mais popular) quanto à abordagem mais sombria do clássico italiano. Não se trata de um conto de fadas, como o que a Disney lançou em 1940, em animação.
Ou mesmo da adaptação mais recente do estúdio, que estreou em setembro último. Com personagens em carne e osso e assinada por Robert Zemeckis, esta é mais uma versão açucarada do boneco que vê seu nariz crescer ao contar mentiras.
A trama de “Pinóquio” saída da imaginação de Del Toro não se passa no século 19, como na obra original de Collodi. E sim na Itália da década de 30, comandada por Benito Mussolini (1883-1945), o que confere um caráter antifascista à animação.
Quando foi questionado sobre a época escolhida para a ambientação de seu “Pinóquio”, Del Toro contou que era importante retratar um mundo onde a população se comporta como marionete, obedecendo as regras sem pensar. Já a marionete é a única “desobediente” da história.