Fio condutor da programação do MASP neste ano, a série Histórias Indígenas dá continuidade a uma lógica adotada pela curadoria do museu desde 2016: um grande guarda-chuva temático sob o qual se organizam não só as exposições como os cursos, palestras, oficinas e publicações.
Às duas primeiras mostras, "Carmézia Emiliano: A Árvore da Vida" e "MAHKU: Mirações", recém-inauguradas, segue-se a esperada "Gauguin: O Outro e Eu". Esta promete um olhar crítico sobre a exotização presente na obra do francês, que passou sua última década de vida no Taiti.
Diante das 35 telas de Carmézia, expostas num sóbrio e reservado espaço no 1º subsolo, talvez o maior desafio para o público seja mergulhar nos registros sem tomá-los como uma espécie de enciclopédia.
“Ninguém classifica o trabalho de um artista branco como um dicionário da cultura branca. Nós não somos macuxi, e precisamos aprender muito com o que a Carmézia faz", disse ao NeoFeed, Amanda Carneiro, curadora-assistente do MASP.
"No entanto, não podemos tratar esse trabalho como forma de saciar nossa curiosidade antropológica. Isso seria reforçar uma posição colonial”, alerta.
Inicialmente classificados como arte popular ou naif, os trabalhos expressam aspectos do cotidiano e da cultura da comunidade. Essa categorização, no entanto, é desmontada pela curadoria.
“Ela aponta para uma série de preconceitos que a elite artística, sobretudo a europeia, adotou em relação ao outro. Geralmente há um recorte social, racial e de classe”, explica Amanda.
“Não se trata de uma narrativa romântica indígena. Carmézia Emiliano é tão contemporânea quanto Beatriz Milhazes. Dialoga com todo mundo que está produzindo neste período”, afirma, referindo-se à carioca que, em 2022, atingiu o topo do ranking dos artistas brasileiros vivos vendidos em leilão.
O destaque para o autorretrato Eu [I], posicionado logo na entrada, parece afirmar uma premissa da exposição: a de romper com a imagem romantizada normalmente associada a pessoas indígenas graças à representação difundida pelos pintores do século 19. A autora se coloca em evidência, ajudando a preencher uma lacuna: a quase ausência de autorretratos de artistas indígenas.
“Ela segura um pincel, realizando uma pintura sobre um cavalete, instrumento tradicional do ofício. Dessa forma, estabelece um diálogo com a história tradicional da arte. Ao mesmo tempo, a cena retrata o Monte Roraima, que evoca uma série de saberes e concepções dos macuxis”, observa a curadora.
Vender tela para comprar terra
Desde que se constituiu como coletivo, no final dos anos 2000, o MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin) tinha claro o objetivo de usar sua arte como ferramenta para melhorar a infraestrutura e a vida nas aldeias da comunidade, localizadas no Acre. "Vender tela para comprar terra".
A rápida inserção no circuito artístico veio acompanhada de uma produção com relevante papel em sua economia. Expostas até junho em um dos museus mais importantes da América Latina, 120 obras terão a chance de amplificar essa atuação.
O conjunto de pinturas, desenhos e esculturas, muitos deles de grandes dimensões, ocupa o 2º subsolo, acessível por duas rampas do projeto original da arquiteta Lina Bo Bardi que também ostentam pinturas site specific realizadas pelo grupo. O panorama, visto do alto, surpreende pelas cores vibrantes, quase fluorescentes. “É o chá, é o chá!”, comenta Kássia Borges Karajá, integrante do MAHKU.
Kássia se refere à bebida sagrada nixi pae, que conduz um ritual ancestral de cura dos huni kuin. “O título da mostra, Mirações, alude às visualizações que acontecem durante a experiência, que atravessa o cotidiano da comunidade. São vivências imagéticas”, explica ao NeoFeed Guilherme Giufrida, curador-assistente do MASP.
Essas visões pautam os temas e a estética propostos pelo grupo – cujo integrante mais experiente, Ibã Huni Kuin, não por acaso um xamã, colaborou na curadoria.
Protagonista no mito do surgimento desse ritual, a jiboia aparece em diversas obras, quase sempre contornando as cenas. Duas grandes serpentes, montadas por Kássia no piso com centenas de peças cerâmicas, parecem fazer o mesmo no espaço expositivo.
“No mito karajá, a cobra representa a tomada de consciência da finitude”, fala a artista, lembrando que o animal também exprime a ideia de segredo.
Grafismos no corpo
A exibição de dois curtas-metragens completa a programação inicial do ano dedicado às Histórias Indígenas. Com curadoria de Edson Kayapó, curador-adjunto de arte indígena do museu, os documentários realizados pelo Coletivo Bepuno Mebengokré, atuante no sul do Pará, fazem parte de um esforço de jovens da comunidade para apresentar a cultura de seu povo por meio de produções audiovisuais.
Os vídeos tecem narrativas sobre a ancestral arte da pintura corporal, protagonizada pelas mulheres Mebengokré-Kayapó. Um deles mostra o processo da produção da tinta de jenipapo e sua aplicação no corpo. Outro traz uma série de entrevistas com pessoas que cresceram com a pintura do jenipapo e urucum feita por suas mães.
Gauguin vem aí
Na sequência, no fim de abril, o 1º andar do MASP se deixará ocupar pela exibição Paul Gauguin: O Outro e Eu, que se propõe a investigar a relação do pintor francês com a ideia de alteridade e exotização.
A mostra abordará problemáticas centrais em sua obra, com foco nos autorretratos e na produção realizada no Taiti (Polinésia Francesa). Seus trabalhos desse período suscitam temas como primitivismo e apropriação cultural, além de questões relacionadas à sexualidade, androginia e erotização do corpo feminino. As Histórias Indígenas estão apenas começando.